Tomé de Souza, por Idalina Tavares, 1999 - Reprodução/ Câmara Municipal de Salvador
Brasil

“Salvador da pátria”: Tomé de Souza e a (re)fundação do Brasil

Há 440 anos, falecia o militar português que desembarcou no Brasil com a missão de pôr ordem na casa

Juan Torres Publicado em 28/01/2019, às 10h00

Em 28 de janeiro de 1579, aos 75 anos de idade, falecia Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil e considerado salvador de nossa pátria. Já em Portugal, havia deixado, no Brasil, os pilares de uma cidade com incrível personalidade política e cultural.

Aos 46 anos, o militar português, filho ilegítimo de um padre, vinha com imensa responsabilidade: construir uma fortaleza em um povoado destruído por índios e saqueado por franceses e transformar o território coberto por todas as capitanias, então caótico, numa estrutura organizada e lucrativa, a serviço de Portugal. Quando a frota atracou, começava a nascer a primeira cidade do Brasil.

A história de Tomé de Souza se mistura com a da própria Salvador. Por isso, a data oficial de fundação da capital baiana ficou sendo a mesma da chegada do governador-geral, ou 29 de março de 1549. Ele veio com triplo mandato: capitão da povoação e terras da baía de Todos os Santos, governador-geral da capitania da Bahia e primeiro governador-geral de todas as capitanias e terras do Brasil.

Tinha à sua espera um cenário desolador, com colonos dispersos, índios amotinados, franceses contrabandistas, administradores ineptos. Na capitania da Bahia, em particular, oficiais da corte calculavam existir de 5 mil a 6 mil guerreiros tupinambás, para cerca de 100 colonos.

O antigo donatário, Francisco Pereira Coutinho, chamado Rusticão por seus modos violentos, fundara em 1536, na ponta do Padrão, onde hoje está o farol da Barra, a vila Velha (ou vila do Pereira). Mas os maus tratos infligidos pelos colonos aos índios, com a permissão do donatário, provocavam levantes frequentes. No mais violento deles, em 1545, a vila foi arruinada e Coutinho, obrigado a fugir para a capitania de Porto Seguro. Um ano depois, ao voltar, naufragou próximo à ilha de Itaparica, onde foi preso e devorado pelos tupinambás.

Com a morte do donatário Rusticão, a capitania da Bahia reverteu à coroa e foi escolhida para se tornar a sede do governo-geral que se formava. Passados quase 50 anos do descobrimento do Brasil, tirando a próspera capitania de Pernambuco, quem mais se aproveitava dessas terras eram os franceses, que mantinham melhores relações com os índios e voltavam com as embarcações transbordando de pau-brasil. A falta de controle português sobre a colônia brasileira era tanta que, em 1548, Luiz de Góis, irmão de Pero de Góis (donatário de São Tomé), pediu socorro ao rei dom João III: "Se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre estas capitanias e costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra", escreveu.

Armada de mil homens

Foi a gota d’água. Portugal não extinguiu as capitanias (o que só aconteceria em 1821), mas decidiu concentrar o exercício do poder sobre o território em uma nova cidade. A instituição do governo-geral, em 1548, é considerada uma evolução do Estado monárquico em Portugal, cada vez mais centralizador, mas também uma medida saneadora. Estava na hora de tomar posse efetiva do Brasil e fazê-lo render.

Para cumprir sua missão, o primeiro governador-geral do Brasil veio preparado. Sua armada reunia três naus (Salvador, Conceição e Ajuda), duas caravelas (Leoa e Rainha), um bergantim (São Roque) e duas outras naus de comércio, que deveriam voltar cheias de pau-brasil. Embarcadas, estima-se de 500 a mil pessoas, entre 130 soldados, 90 marinheiros, 70 profissionais (carpinteiros, ferreiros, serradores etc.), funcionários públicos, jesuítas comandados por Manuel da Nóbrega, 500 degredados e outros peões para o trabalho pesado.

Debaixo do braço, Tomé trazia o Regimento do Governador e Capitão Geral, com as ordens do rei dom João III, redigido em 17 de dezembro de 1548. Com 48 artigos, determina a fundação da cidade-fortaleza e trata da defesa militar da costa, das relações com os índios, de doações de sesmarias, cobrança dos proventos devidos à corte. "Foi o que alguns chamam de a primeira Constituição do Brasil", diz o historiador Cid Teixeira.

 A chegada na Bahia Wikimedia Commons

Quando o grupo de Tomé de Souza desembarcou, foi muito bem recebido. "Achamos a terra de paz e 40 ou 50 moradores na povoação que antes era. Receberam-nos com grande alegria", escreveu Manuel da Nóbrega. Mas, se as relações com os índios eram tão tensas, como explicar a acolhida descrita pelo jesuíta? Graças à presença, em terra, de Diogo Álvares Correia, o Caramuru, aliado dos índios e mediador indispensável aos propósitos portugueses.

Dois meses antes da chegada da armada, o rei mandara carta a Caramuru pedindo sua colaboração: "Porque sou informado, pela muita prática e experiência que tendes dessas terras e da gente e costume delas, o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que quando o dito Tomé de Souza lá chegar, vos vades para ele, e o ajudeis no que lhe deveis cumprir e que vos encarregar".

Uma vez em terra, uma das primeiras medidas de Tomé foi reagrupar os colonos. Dessa vez, não ocupou a ponta do Padrão, aberta ao mar, à mata e, por isso, vulnerável. A 5 quilômetros da vila Velha, o governador-geral encontrou uma colina que caía verticalmente sobre a praia. Era o ponto mais alto da região, uma perfeita defesa natural, com fontes de água e um rio (das Tripas), na direção oposta ao mar.

As obras começaram já em abril, menos de um mês depois do desembarque. Ajudado por Manuel da Nóbrega, na catequese, e por Caramuru, Tomé incorporou os índios aos esforços de edificação, para compensar a escassez de mão-de-obra portuguesa. O trabalho indígena era forçado ou pago com foices, enxadas, tesouras, espelhos, pentes e anzóis.

Mão na massa

A primeira cidade oficialmente fundada na colônia - até então só existiam vilas - seria capital do Brasil por mais de dois séculos, de 1549 a 1763. Seu traçado foi inspirado nos modelos florentinos do Renascimento, mas à moda rústica. A muralha ao longo da cidade era de taipa, o mesmo material aproveitado para construir as casas (inclusive a do governador), que tinham teto de palha e baixo (1,70 metro de pé-direito). "Eventualmente, utilizavam-se tapetes de pele de onças-pintadas, mas nunca faltava a rede de algodão, chamada ‘rede de bugre’, cujo uso os portugueses aprenderam com os indígenas", escreve Eduardo Bueno, no livro A Coroa, a Cruz e a Espada.

Enquanto os prédios da administração pública e as moradias ficavam no alto da colina, na Cidade Baixa estava o aparato do porto: ancoradouro, armazéns, Casa de Fazenda e Contos e a Casa de Pólvora (uma das raras de pedra).

A construção de Salvador  Wikimedia Commons

Tomé se mostrava dedicado a cumprir o regimento do rei. E, aparentemente, gostava de dar exemplo, trabalhando com os peões nos canteiros de obras. "Onde ouvi dizer a homens do seu tempo (que ainda alcancei alguns) que ele [o governador-geral] era o primeiro que lançava mão do pilão para os taipais e ajudava a levar a seus ombros os caibros e madeiras para as casas", escreveu frei Vicente do Salvador, em História do Brasil 1500-1627. 

Apesar de alguns historiadores duvidarem da versão do frei, escrita no século 17, o mero registro dessa imagem de administrador diligente revela a habilidade política do governador. "Tomé de Souza dominou as más paixões pela singeleza do seu caráter", diz o professor Braz do Amaral, no livro Resenha Histórica da Bahia.

Muito antes de Amaral, o cronista português Gabriel Soares de Souza, que veio para a Bahia em 1565, contou em seu Tratado Descritivo do Brasil que "o gentio [como chamavam aos índios] por muito tempo viveu muito quieto e recolhido, andando ordinariamente, trabalhando na fortificação da cidade a troco do resgate [escambo] que por isso lhe davam". Valendo-se, assim, da mão-de-obra de um povo que, a princípio, não tinha por que lhe servir, recebendo apenas ferramentas e utensílios, Tomé conseguiu erguer a cidade.

"Ele foi muito bem recebido pelos colonos e tinha um bom relacionamento com os índios", explica a professora Consuelo Ponde de Sena, então presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.

Cortem as orelhas!

Mas nem tudo era um mar de rosas. Uma fonte de preocupações era a manutenção da ordem numa população formada, em grande medida, por ex-presos enviados pela coroa. A primeira condenação por furto em Salvador data de 1550, e envolveu justamente um degredado, Sebastiam d’Elvas. Pelo crime, segundo sua sentença, ele foi açoitado e "desorelhado".

Outro problema era a ausência de mulheres na cidade. Não vieram mais que dez na esquadra de Tomé. E os colonos começaram a se relacionar com as índias.

"Enquanto os índios eram violentamente submetidos e tomados para escravos ou para mandar vender no reino, as negras [índias] eram raptadas ou presas para mancebas dos brancos, com os quais viviam em escandalosa poligamia", escreveu o antropólogo Thales de Azevedo, em O Povoamento da Cidade do Salvador. Alarmado, Manuel da Nóbrega pediu ao rei, quase em desespero, que mandasse ao Brasil mulheres portuguesas, mesmo que de má reputação. Dom João III enviou seis órfãs, em 1551, e incumbiu o governador de casá-las. Ele obedeceu, mas tão exíguo suprimento de noivas não serviu para impedir a miscigenação.

O próprio Tomé de Souza não escondia as saudades da mulher e da filha. Em carta de 1552, tenta convencer o rei, "por amor de Deus", que o devolvesse às duas, em Portugal. Mas, antes de voltar, ele teria de percorrer a costa para vistoriar as capitanias do Sul. Ao lado de Manuel da Nóbrega, foi até São Vicente, passando por Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Angra dos Reis.

"Todas as vilas e povoações de engenhos desta costa fiz cercar de taipa com seus baluartes (...) e lhes dei toda a artilharia que me pareceu necessária", diz, em carta ao rei de junho de 1553. A missão estava cumprida. O seu mandato, que inicialmente duraria três anos, já havia passado de quatro.

De fato, desde março daquele ano, ele já não era governador-geral. A seu pedido, o rei nomeou para o posto Duarte da Costa, que chegaria à Bahia em julho. O meirinho correu para avisar Tomé, que, apesar de ter pedido tanto para partir, não reagiu com alívio, mas perplexo. "Vedes isso, meirinho? Verdade é que eu desejava muito, e me crescia água à boca quando cuidava em ir para Portugal; mas não sei que é que agora se me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso", teria dito, segundo frei Vicente.

Assim terminava mais uma demanda daquele fidalgo - nas palavras de Gabriel Soares de Souza, "honrado, ainda que bastardo, homem avisado, prudente e mui experimentado na guerra da África e da Índia, onde se mostrou mui valoroso cavaleiro em todos os encontros que se achou". Tomé de Souza pôde, então, voltar a Portugal.


Saiba mais

A Coroa, a Cruz e a Espada: Lei, Ordem e Corrupção no Brasil Colônia, Eduardo Bueno. 

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