Herói inaugurou um novo gênero literário, a fantasia com os pés no chão
Celso Menezes Publicado em 14/04/2019, às 03h00
O corredor do palácio estava em silêncio - moradores e hóspedes dormiam em seus aposentos. Era a hora propícia para uma emboscada e 20 figuras furtivas esgueiravam-se à procura do lugar certo. "A porta rachou e cedeu para dentro. Mas, ao entrar no quarto, os conspiradores estancaram. Quem os encarava era Conan. Não um homem nu, desarmado, confuso e tirado de seu sono profundo, para ser massacrado como uma ovelha, mas um bárbaro bem alerta, acuado e pronto para se defender, parcialmente vestido com sua armadura e empunhando sua longa espada. Ele encarou, por um breve instante, o círculo humano que se fechava ao seu redor e então pulou para o meio deles. Sua alma de bárbaro estava em fogo."
Herói, ladrão, saqueador, matador. Assim, Conan foi apresentado ao público na década de 1930, "com gigantescas melancolias e alegria gigantesca, a trilhar os tronos de joias da terra sob seus pés calçados em sandálias".
O cimério, que seria conhecido ainda como Gigante de Bronze, serviu de base para as narrativas de espada e feitiçaria. É um tipo de baixa fantasia, histórias geralmente violentas, passadas num mundo como o nosso, no qual a mágica aparece como uma intrusa, não um elemento natural do mundo. Os feiticeiros em Conan não são velhinhos sábios com cachimbos, mas vilões, antagonistas de um herói mundano. Também contrasta com a alta fantasia no fato de que os conflitos são menores, pessoais, não uma saga para salvar o mundo. Pense no ambiente de O Senhor dos Anéis em contraste com Game of Thrones e você entende como o bárbaro abriu caminho para o segundo.
O personagem
A saga de Conan não começou na Hollywood de Arnold Schwarzenegger nem nas HQs. Ele habitava a Era Hiboriana, mais ou menos há 12 mil anos, antes de um evento cataclísmico que coincide com o desaparecimento da civilização de Atlântida e teria lavado da Terra todo resquício de sua época. As aventuras do bárbaro surgiram nas páginas da revista americana Weird Tales. A publicação, cujos exemplares são hoje item (caríssimo) de colecionador, era uma das maiores representantes da Pulp Fiction - o nome se refere ao conteúdo e à matéria-prima desse tipo de ficção, impresso em papel de qualidade inferior, feito com uma polpa (pulp) de celulose. Impressas a baixo custo, histórias fantásticas e de ficção científica costumavam fazer grande sucesso, sobretudo nas cidades americanas maltratadas pela Crise de 1929.
Robert Ervin Howard, autor do personagem / Wikimedia Commons
Howard conseguiu emplacar seus primeiros contos aos 19 anos. Nascido numa pequena cidade do interior do Texas, confrontou o pai, médico, para seguir a carreira de escritor. A estreia foi com Spear and Fang ("Lança e Presa"). Em 1929, lançou um conto com Kull, o Conquistador (quem cresceu nos anos 1990 trombou com ele em alguma Sessão da Tarde). Apesar de se passar antes da Era Hiboriana (e da criação de Conan), o estilo e a ambientação da narrativa foram o alicerce do universo e do personagem que tornariam o autor popular três anos depois. Ao ter uma história de Kull recusada pelo seu editor, Howard a reescreveu com um novo protagonista. A estrela de The Phoenix on the Sword ("A Fênix na Espada") era Conan, o cimério. "Meus personagens são mais parecidos com homens do que esses homens reais. Eles são ásperos e rudes, odeiam e invejam. Tire a pele da civilização e você encontra o macaco, rugindo", escreveu o autor em carta a um amigo. O heroísmo controvertido de Conan lhe garantiu sucesso imediato, e o personagem ganhou espaço na Weird por anos seguidos. O cimério era simples e objetivo, movido pelos mais básicos instintos: procurava bebiba, mulheres e riquezas. Ao mesmo tempo, era sagaz e calculista - até cruel, mas não era para menos. Nascido num campo de batalha, aos 15 anos Conan resolveu conhecer o mundo. Howard o retratou desde a adolescência até a maturidade, como aventureiro, ladrão, pirata, mercenário e, finalmente, rei. "Excluindo o lado sobrenatural das suas histórias, é o personagem mais realista que eu já escrevi. Ele é simplesmente uma combinação de vários homens que conheci", dizia o escritor.
À parte a personalidade "realista", outro provável motivo da fácil identificação do público com as aventuras do bárbaro está no fato de que elas não tinham uma ordem cronológica. Uma edição não exigia conhecimento prévio do número anterior. "Mais do que uma trajetória de vida, havia um contexto histórico fictício articulado em torno do bárbaro. Cada aventura se passa num momento da sua vida e das sociedades em torno", afirma Carlos Patati, mestre em comunicação e cultura pela UFRJ e autor de Almanaque dos Quadrinhos. Apesar de se passar em uma época e locais fictícios, cada história tinha paralelos com a realidade. A Ciméria, por exemplo, seriam as Ilhas Britânicas. Já a Aquilônia, região onde Conan se tornaria rei, seria a França, e sua rival vizinha, a Nemédia, a Alemanha.
Nas revistas de Pulp Fiction, nasceram várias figuras marcantes, como Tarzan e o Sombra. E se firmaram os cânones de uma literatura popular de aventura e fantasia. Autores de ponta, como Ray Bradbury, começaram nessas edições baratas. Mas a maioria de destacava por cumprir prazos apertados, como Walter B. Gibson, o pai do Sombra (no rádio, imortalizado pela gargalhada sinistra de Orson Welles). Havia histórias de terror, policial, ficção científica, western... Quase todas produzidas a toque de caixa. Seus temas, todavia, se disseminaram pela cultura popular americana. Weird Tales e suas concorrentes são claros antecessores dos gibis de super-heróis.
Redescoberta
Depressivo e vítima provavelmente de esquizofrenia, Howard era assombrado pela violência que usava em suas histórias. Tímido, na infância foi vítima frequente da chacota de outros garotos. Acreditava que existiam inimigos tentando eliminá-lo e, por isso, andava armado. Muito ligado à mãe, entrou em crise quando ela ficou extremamente doente. Ao se convencer de que ela não despertaria de um coma de vários meses, foi ao cemitério local de Cross Plains, sua cidade natal, e reservou três túmulos: para a mãe, o pai e para ele próprio. No dia seguinte, suicidou-se com um tiro na cabeça, aos 30 anos. Trinta horas depois, faleceu também sua mãe.
Quase 20 anos após a morte do autor, os escritores Lyon Sprague de Camp e Lin Carter organizaram sua obra e relançaram as histórias de Conan, finalizando as que não haviam sido terminadas e, depois, criando aventuras inéditas. Era o primeiro passo para consolidar um personagem singular na mídia americana por não agir o tempo todo impulsionado por generosidade, amor ou ideais, mas por seus próprios interesses. Na década de 1960, o escritor Fritz Leiber batizou o gênero "lançado" por Howard como Sword and Sorcery. Já no início dos anos 1970, inspirado pelas reedições dos contos de Conan que tinham capas ilustradas pelo desenhista Frank Frazetta, o escritor Roy Thomas conseguiu convencer a Marvel Comics a comprar os direitos do personagem. Como a editora não botava muita fé no projeto, o próprio Roy cuidou dos roteiros, enquanto um artista novato (e barato), Barry-Windson-Smith, foi encarregado da arte. Novamente. o cimério arrasou. Mas o que é considerado o auge do personagem ainda estava por vir. Dois anos depois, o artista John Buscema (conhecido por desenhar heróis como o Homem-Aranha) daria a cara da versão mais conhecida de Conan. A repercussão chamou a atenção de Hollywood, o que consolidou de vez a imagem do guerreiro. Se era tão popular nas bancas, por que não levá-lo para o cinema? Conan, o Bárbaro revelou o ator austríaco Arnold Schwarzenegger e teve, quem diria, os mesmos roteiristas do clássico Apocalipse Now: John Milus e Oliver Stone. Milus dirigiu a produção, em 1982, com roteiro assinado por Stone. Logo em seguida, veio Conan, o Destruidor, do diretor Richard Fleisher.
Passados anos de sua criação, a obra de Howard cativa até os homens mais poderosos do planeta. O ex-presidente americano Barack Obama já disse ser fã do personagem. E a mesma Cross Plains que zombava do autor tímido e esquisito na infância agora mantém um museu sobre ele.
As mulheres do cimério
Amantes e guerreiras para todas as fases do personagem
Bêlit
A rainha Bêlit / Domínio publico
Conan conhece a Rainha da Costa Negra quando o navio em que estava foi afundado pela pirata e seus Corsários Negros. Amor à primeira vista, eles se tornaram parceiros na pirataria e desbravaram os mares juntos por três anos.
Valéria
A guerreira Valéria / Wikimedia Commons
Valéria da Irmandade Vermelha foi a última criação de Howard. Era uma hábil guerreira sem perder a feminilidade. Conan era mercenário quando a encontrou. Meses depois, tornaram-se amantes e dedicaram-se à pirataria.
Zenóbia
A ex-concubina Zenóbia / daledrinnon.com
Perto dos 40 anos, o bárbaro mata o rei da Aquilônia e fica com a coroa, mas vira alvo constante de súditos descontentes. Zenóbia, uma ex-concubina que havia salvado sua vida certa vez, é escolhida sua rainha. Tiveram três filhos.
Sonja
A guerreira Sonja / Dark Horse Comics
Embora tenha algumas características da personagem do conto de Howard Red Sonya de Rogatino, a guerreira foi criada por Roy Thomas para os quadrinhos. Tornou-se a mais conhecida figura feminina ligada a Conan.
Saiba mais
Conan, o Cimério, Robert E. Howard, 2006
Dom Antônio de Orleans e Bragança recebia a "taxa do príncipe"?
Banco Central sob Ataque: Veja a história real por trás da série da Netflix
Outer Banks: Série de sucesso da Netflix é baseada em história real?
O Rei Leão: Existe plágio por trás da animação de sucesso?
Ainda Estou Aqui: O que aconteceu com Eunice Paiva?
Ainda Estou Aqui: 5 coisas para saber antes de assistir ao filme