As cruzadas - Reprodução
Cruzadas

As cruzadas segundo os islâmicos

Você aprendeu sobre os cristãos que lutaram para reconquistar Jerusalém. Conheça agora a história contada pelo outro lado

Isabelle Somma Publicado em 19/12/2018, às 12h00

“Glorioso seja Allah, o criador e autor de todas as coisas! Qualquer um que tenha tido conhecimento do que diz respeito aos faranj apenas pode glorificar e santificar Allah, o Todo-Poderoso, pois neles se veem animais que são superiores em coragem e fervor para lutar, e em nada mais, assim como bestas são superiores em força e agressividade.” Esse trecho de Ossama Ibn Mounkidh, diplomata e cronista sírio que em sua autobiografia fez várias descrições dos cruzados, resume a opinião dos árabes muçulmanos sobre os faranj – palavra que vem dos francos, os germânicos que dominavam a maioria da Europa no início do islã. Era então aplicado a todos os cruzados, viessem de onde viessem.

A brutalidade dos recém-chegados chocou os habitantes do Líbano, da Síria e da Palestina e provocou uma enorme comoção em todos os cantos do mundo islâmico. Foram responsáveis por saques, massacres, atos de crueldade contra mulheres e crianças e – segundo eles próprios registraram – até canibalismo.

Para os islâmicos, a invasão dos “cavaleiros de Cristo” era uma barbaridade. Não havia ocorrido desentendimento algum que justificasse as campanhas militares dos cristãos. O início das cruzadas se dera por um pedido do imperador bizantino Alexios Komnenos ao papa. Queria um esforço para retomar as cidades de Antioquia e Niceia, capturadas pelos turcos seljúcidas. Que nada tinham a ver com Jerusalém, parte do Califado Fatímida – inimigos, aliás, dos turcos.

Islâmicos na Idade Média Reprodução

Os cruzados diziam estar ali para retomar os locais considerados santos pelos cristãos. Do ponto de vista islâmico, não havia razão. Os principais pontos de peregrinação cristãos estavam abertos a eles, como a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Os cristãos de rito oriental, como ortodoxos, armênios, maronitas e siríacos, formavam o maior grupo na cidade, sagrada para muçulmanos e judeus. E, apesar de Jerusalém ser governada por muçulmanos, não havia restrição às práticas religiosas não islâmicas.

A sharia garantia a proteção aos “Povos do Livro”, limitando as igrejas a serem mais baixas que as mesquitas e impondo o pagamento da jyzia, o imposto especial que os cristãos e os judeus eram obrigados a pagar e cuja taxa era calculada de acordo com a riqueza do contribuinte: quanto mais rico, maior o imposto. Os pobres eram isentos. Segundo a historiadora Carla Obermeyer, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, no Califado Fatímida, a quantia raramente era recolhida. Os peregrinos cristãos também eram recebidos em Jerusalém sem nenhuma restrição. Podiam visitar a Via Dolorosa, o Monte das Oliveiras e a Igreja do Santo Sepulcro sem serem incomodados.

Havia exceções, mas eram relativamente esporádicas. Em 1009, o califa Al-Hakim havia perseguido cristãos e ordenado a destruição da Igreja do Sagrado Sepulcro. Mas isso fora 90 anos antes, e, agora, a igreja estava novamente de pé.

A tolerância não era recíproca. Cristãos chamavam de “cachorro depravado” o profeta Maomé. “Os muçulmanos ficavam obviamente ofendidos com essa calúnia. E, como reverenciavam Jesus (Isa) como um dos profetas enviados por Allah, ficavam perplexos com o obstinado apego dos cristãos a uma ideia de Deus que contradizia explicitamente a descrição de Allah, a da Trindade cristã”, afirma David Waines, autor de An Introduction to Islam (“Uma Introdução ao Islã”). Para os islâmicos, Deus não pode ser dividido em três. Isso é politeísmo. E é uma profunda heresia dizer que um homem como nós seja Deus – mesmo em se tratando de Isa, o segundo maior profeta, que irá retornar ao fim dos tempos para enfrentar o antimessias.

Crianças em espetos

A imagem dos cruzados se deteriorou mais após a conquista de Antioquia e principalmente de Maara, cidades da Síria, na época. Como não tinham como se defender, os habitantes de Maara fizeram um apelo aos invasores cristãos. Em troca da rendição, pediram que fossem poupados. O acordo foi fechado. Mas, nas primeiras horas de 11 de dezembro de 1098, o exército cruzado entrou na cidade e desconsiderou o tratado. Os habitantes foram massacrados durante três dias, e os sobreviventes tornaram-se escravos.

E o que parecia inimaginável aconteceu: cristãos devoraram islâmicos. Segundo eles mesmos: “Em Maara, os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeira, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas”, descreve o cronista franco Raul de Caén. Os relatos de canibalismo dos invasores se espalharam por todo o mundo islâmico – a carne humana é explicitamente considerada haram, proibida, como a de porco e de cachorro. Surpreendentemente, não há uma proibição explícita na Bíblia ao canibalismo.

Ilustração de canibalismo medieval Reprodução

Os cruzados tentaram justificar o comportamento, argumentando que, no cenário hostil da guerra, não tinham escolha. Segundo o historiador britânico Steven Hunciman, entre os cristãos reinava a fome, “e o canibalismo era a única solução”. A justificativa, mesmo que verdadeira, não convenceu os árabes. A matança canibal enterrou de vez qualquer chance de uma saída pacífica.

Para os islâmicos, os europeus soavam como um bando de bárbaros primitivos. “Na maior parte dos padrões, a sociedade islâmica deve ser considerada mais urbana e educada que a ocidental no período da Baixa Idade Média (do século 12 ao 15) tanto na vida intelectual como nos valores do dia a dia”, afirma o historiador Marshall Hodgson em The Venture of Islam (“A Ventura do Islã”). Segundo ele, os árabes da época eram urbanos e alfabetizados, enquanto a grande parte dos cruzados se formava de iletrados que vinham de sociedades agrárias, de forma feudal. Por isso, os costumes de invasores e invadidos eram discrepantes, provocando estranhamento maior entre os árabes.

Outro relato do cronista Ossama Ibn Mounkidh ilustra bem a diferença entre as duas civilizações. Ele conta que um médico franco se prontificou a cuidar de uma mulher que estava definhando em consequência da febre. De pronto, diagnosticou que havia um demônio na cabeça da paciente e sugeriu que a raspassem. A saúde da paciente, claro, piorou. Em seguida, ele cortou, em formato de cruz, a cabeça com uma navalha até que os ossos do crânio aparecessem. Aplicou sal e, em minutos, a mulher morreu. Em tempo: ela tinha apresentado melhora com o tratamento oferecido por um médico islâmico, que receitara apenas uma dieta sem mostarda e alho. Tavez não muito mais eficiente, mas menos místico e menos letal.

Exemplos de intolerância

A tomada de Jerusalém, em 1099, ilustra bem o estranhamento. Para os cruzados, a batalha pela cidade era um autêntico ato de fé. Eles acreditavam ver anjos que os guiavam e, em seguida, combatiam a seu lado. Principais alvos: lugares sagrados. O local onde Maomé teria ascendido aos céus, o Domo da Rocha, sobre as ruínas do Segundo Templo de Jerusalém, foi a cena de um massacre. O cronista Foucher de Chartres, que acompanhou o exército, afirmou: “Neste templo, 10 mil foram mortos.

De fato, se estivesses ali, teríeis visto nossos pés tingidos até as canelas com o sangue dos mortos. O que mais devo dizer? Nenhum deles foi deixado vivo; nem mulheres nem crianças foram poupadas”. Depredada, a mesquita se tornaria a sede da Ordem dos Cavaleiros Templários, em 1119. Os judeus, quase não é preciso dizer, não tiveram um destino mais piedoso. Eles ajudaram os islâmicos em sua defesa. Segundo o cronista islâmico Ibn al-Qalanisi, terminaram cercados na sinagoga central, que foi queimada com eles dentro. Há ainda relatos de cristãos orientais massacrados, mas são posteriores, e contradizem documentos que falam neles terem sido evacuados por medo de formarem uma quinta-coluna.

Até então a dinastia fatímida não havia esboçado nenhuma reação. Assim chamados por dizerem descender de Fátima, filha de Maomé, e de Ali, quarto califa, estavam perdidos em uma crise interna.

O caos político no Oriente vinha de longa data. Desde o início do século 10, o mundo islâmico se dividia entre duas facções rivais: a dinastia fatímida, com capital no Cairo, e a abássida, em Bagdá. Essa rivalidade política também se estendia à disputa pela liderança do mundo islâmico no sentido religioso. Os fatímidas eram xiitas, enquanto os abássidas, sunitas, e todos defendiam linhas de sucessão distintas do Profeta.

As cruzadas Reprodução

Os relatos do que estava acontecendo nas terras invadidas pelos cristãos ocidentais, no entanto, começaram a provocar revolta. Logo depois da queda de Jerusalém, um orador não identificado fez um discurso em uma mesquita de Bagdá: “Vocês ousam vacilar à sombra de uma vida frívola como a de uma flor no jardim. Enquanto seus irmãos sírios têm por única morada o lombo dos camelos ou as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado!”, descreve Amim Maalouf, cristão de origem libanesa em seu clássico As Cruzadas Vistas pelos Árabes.

É verdade que durante muito tempo os fatímidas e os abássidas ficaram nas capitais de seus impérios sem esboçar reação. Mas o castigo por tão pouca disposição em defender seus irmãos não demoraria a chegar. O último califa fatímida morreu sem mesmo saber que já havia sido destronado por Saladino, líder da contraofensiva muçulmana em 1171. Os abássidas sofreram muito mais nas mãos dos mongóis. Hulagu, neto de Gengis Khan, arrasou Bagdá em 1258 e determinou que a família real fosse pisoteada pelos cavaleiros de seu exército.

Quase um século depois da chegada dos cruzados, os muçulmanos finalmente se organizaram para uma retaliação. Sob a liderança do curdo sunita e nativo de Bagdá Saladino, retomaram Jerusalém. Diferentemente de seus inimigos, Saladino ofereceu a possibilidade de exílio aos invasores.

Segundo o historiador Jonathan Phillips, autor de The Fourth Crusade and the Sack of Constantinople (“A Quarta Cruzada e o Saque de Constantinopla”), pela maior parte de sua história, os islâmicos não pareceram se importar muito com as cruzadas: “Fora só uma invasão entre várias outras em sua história”. Uma que eles, ao final, venceram.

Isso mudou com o imperialismo europeu e a resposta a ele, o surgimento do nacionalismo árabe no século 19. Uma nova palavra substituiu o farangi: salibiyyun, literalmente “cruzado”. Metáfora para invasor ocidental, usada por nacionalistas e islamistas. Hoje quase sempre acompanhada de “americano”.

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