No mundo inteiro, castrar-se parcial ou totalmente já foi um meio de vida, e até mesmo uma profissão
Eliza Muto e Roberto Navarro Publicado em 17/02/2020, às 12h13 - Atualizado às 12h14
Atualmente parece loucura, mas tornar-se eunuco, ou seja, castrar-se parcial ou totalmente, já foi um meio de vida, uma profissão.
A tradição de contratar homens castrados nos palácios e haréns vem do mundo antigo, mas atravessou o tempo e o espaço, passou por Roma e Grécia, pelos fenícios do norte da África e chegou à Europa do século 20. Entenda como era a vida deles em três locais: China, Oriente Médio e Europa.
China
Um velho velho ditado Chinês dizia que só havia uma coisa pior do que nascer mulher — era virar eunuco. Pu Yi (1906-1967), o último imperador, registrou em seu diário que espancá-los fazia parte da rotina e que, para espantar o tédio, atirava neles com sua espingarda de chumbinho.
Mas nem sempre foi assim. Os eunucos apareceram por volta de 1050 a.C., durante a dinastia Chou — que, segundo a tradição, teria durado de 1122 a.C. a 255 a.C. —, quando a castração foi incluída nos códigos legais chineses como forma de punição.
Além de castrados, os condenados eram obrigados a trabalhar de graça abrindo estradas, construindo pontes e servindo aos nobres.
Essa tradição atravessou os séculos e, embora em sua maioria os castrados fossem analfabetos e trabalhassem em serviços braçais, com o tempo passaram a controlar a burocracia, fazendo fortuna e conseguindo prestígio e poder. “Em pelo menos três dinastias, os eunucos governaram de fato a China, tamanha sua influência”, diz o historiador japonês Taisuke Mitamura, da Universidade de Kioto.
“Dos nove imperadores que reinaram durante os últimos 100 anos da dinastia Tang (de 618 a 907), sete chegaram ao trono por meio de conspirações de eunucos da corte, e os outros dois foram assassinados por eles, depois de contrariar seus interesses.”
A castração voluntária era uma forma de escapar da miséria e os filhos de camponeses davam-se ao sacrifício em nome da família. Numa campanha de recrutamento de 1540, para 3 mil vagas surgiram 20 mil candidatos.
“Mas havia eunucos e eunucos. E, se havia aqueles que desempenhavam funções indesejáveis, como a de carrasco, havia servidores públicos graduados, responsáveis, entre outras coisas, pela coleta de impostos”, diz Mitamura.
Jovens de famílias ricas também se interessavam pelo posto, de olho em cargos de prestígio, como administradores, diplomatas e comandantes militares.
Chuo Chung Chi, um cronista (e eunuco) que viveu no fim da dinastia Ming, relata que os castrados monopolizavam os projetos de construção por todo o país, incluindo as obras na casa do próprio imperador. Com tanta demanda, o recrutamento atraía multidões. Em um deles, em 1580, foram admitidos 70 mil eunucos. Na época, o harém real tinha 9 mil mulheres e 100 mil castrados trabalhavam lá.
Na China, os genitais eram submetidos a um tratamento para preservá-los em salmoura. Eram colocados numa vasilha e devolvidos ao dono, que precisava apresentá-los aos superiores no palácio, comprovando a castração. A vasilha com a genitália podia ser solicitada durante uma inspeção, ou sempre que o funcionário fosse promovido.
Esta exigência gerou um mercado paralelo de genitais removidos. Em caso de perda ou furto — não era raro um eunuco roubar e destruir o “precioso” do rival, para impedir o avanço de sua carreira — era preciso substituí-lo, pedindo emprestado a outro eunuco ou recorrendo a cirurgiões inescrupulosos que coletavam genitais extirpados para alugá-los ou vendê-los a preços que podiam chegar a 50 taeis (1,5 kg de prata).
Em 1911, a revolução republicana forçou a abdicação de Pu Yi. Embora tenham eliminado as instituições do antigo regime, os novos governantes permitiram que o imperador continuasse vivendo na Cidade Proibida com os eunucos.
Em 1949, quando os comunistas tomaram o poder, os castrados viraram símbolo da decadência e foram isolados em asilos. O último eunuco chinês morreu em 1996, pouco antes de completar 94 anos de idade, num templo em Pequim, onde vivia.
Oriente Médio
“A imagem que fazemos dos eunucos dos reinos muçulmanos é a daqueles escravos negros prostrados nas portas dos haréns, mas no Império Otomano, desde o século 7, eles exerceram todo tipo de função, desde zeladores de mesquitas até administradores e professores”, diz o historiador David Ayalon, autor de Eunuchs, Caliphs and Sultans: A Study of Power Relationships (Eunucos, Califas e Sultões: Um Estudo de Relações de Poder, sem versão em português).
Segundo ele, os escravos vindos da Europa oriental, da Ásia e, principalmente, da África eram castrados em território não islâmico, na crença de que isso mantinha a terra muçulmana pura. Para efetuar o trabalho, alguns centros especializados em castração foram criados nas fronteiras do território otomano.
Especializados, nesse caso, é maneira de dizer, já que não passavam de locais improvisados, onde os próprios comerciantes de escravos, ou às vezes seus captores, faziam a cirurgia, que podia até variar de método, mas era sempre dolorosa e potencialmente mortal.
Em alguns lugares, o procedimento consistia em abrir o escroto com uma lâmina e apenas retirar os testículos. Noutros, tudo era retirado. Poucos dias depois, os escravos eram entregues a seus novos donos: os sultões.
Geralmente, os escravos vindos do norte da África tinham o pênis inteiro retirado. O que, na hierarquia do harém, acabava sendo um privilégio, já que só os eunucos nessa condição podiam atuar como guardiões do leito e ficar longe do trabalho pesado.
Eram eles que levavam a concubina aos aposentos do sultão e os únicos homens que podiam entrar no harém no caso de emergência. “Os mais antigos chegavam a atingir o posto de kizlar agha, uma espécie de terceiro homem do império — abaixo apenas do sultão e do califa —, exercendo grande poder político na corte”, diz Ayalon.
Europa
No Ocidente, os eunucos mais famosos, ricos e poderosos foram os castrati, cantores que brilharam nas cortes européias dos séculos 17 e 18. Recrutados entre filhos de camponeses e artesãos ou em orfanatos, eles eram castrados na infância para manter intactos seus timbres agudos de voz e passavam a viver sob a proteção da nobreza e do clero.
“Os sopranos masculinos eram as estrelas do canto barroco e das óperas”, diz o historiador Patrick Barbier, autor de História dos Castrati. Segundo ele, os eunucos-cantores ganharam os palcos europeus, tendo à sua volta um séquito de reis, papas, nobres e artistas.
Mozart, por exemplo, utilizou a voz cristalina desses cantores para interpretar suas criações, até que se cansou das exigências de algumas estrelas, como Farinelli. Considerado o maior entre todos os cantores castrados, ele se tornou amigo próximo do rei Filipe V, da Espanha, onde chegou a exercer funções políticas nada desprezíveis.
Uma especificidade dos castrati era que deles somente os testículos eram extirpados pelo médico ou barbeiro, que na época eram a mesma pessoa. Segundo Barbier, a maioria podia inclusive ter relações sexuais mais ou menos normais, já que a castração não impedia a ereção nem a emissão de esperma.
Nesse caso, a mais afetada (sem trocadilhos) era a aparência. Castrados muito jovens desenvolviam uma estrutura muscular próxima da feminina, com depósitos de gordura nos quadris, coxas e pescoço e ausência de pelos.
Outro problema era o interesse sexual. Sem a testosterona produzida pelos testículos, era difícil ter algum apetite pelo assunto. Apesar disso, alguns ficaram mais famosos pelas estripulias sexuais do que por sua voz e viraram ídolos das mulheres, que protagonizavam cenas de histeria dignas das fãs de Michael Jackson. Um deles, Rauzzini, chegou a posar para grandes artistas da época e virou uma espécie de cantor-modelo-manequim do século 18, mais conhecido pela beleza do que pela voz.
No fim do século 18, no entanto, a Igreja, acuada com a questão moral da castração, começou a reagir, condenando, ainda que de maneira velada, a mutilação dos jovens. E a Europa também já mostrava sinais de indignação com a prática, particularmente os filósofos do Iluminismo.
Jean-Jacques Rousseau se levantou contra os “pais bárbaros” que “entregam os filhos para o prazer de gente voluptuosa e cruel.” Por fim, em 1902, o papa Leão XIII proibiu a utilização de castrati na música sacra. E, aos poucos, os eunucos-cantores foram desaparecendo.
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