O presidente Getúlio Vargas - Domínio Público/Governo do Brasil
Getúlio Vargas

70 anos atrás: Como foi a morte de Getúlio Vargas?

Há 70 anos, Getúlio Vargas deu fim à própria vida: era o desfecho de uma crise política e militar que atingiu o ápice nos dias anteriores à tragédia

Marcus Lopes Publicado em 24/08/2024, às 08h00

Na manhã de 24 de agosto de 1954, poucos minutos após os relógios marcarem 8h30 da manhã, um barulho alto e seco de tiro ecoou por todo o Palácio do Catete, então sede do governo federal, no Rio de Janeiro.

O estampido vinha do terceiro andar do palácio, onde ficavam os aposentos do presidente Getúlio Vargas. Assustados com o barulho, seus filhos, Lutero e Alzira, e a esposa, Darcy, correram em direção ao quarto presidencial. Era tarde demais. O mandatário do país, enfim, cumpria sua profética declaração estampada, no dia anterior, na manchete do jornal Última Hora: “Só morto sairei do Catete!”.

Naquela manhã fatídica, sete décadas atrás, Getúlio estava deitado, com meio corpo para fora da cama. No pijama listrado, em um buraco chamuscado por pólvora bem na altura do coração, se espalhava uma mancha vermelha de sangue. O revólver Colt calibre 32, com cabo de madrepérola, jazia caído ao seu lado, conforme descreve o jornalista e escritor Lira Neto no terceiro volume da biografia Getúlio (Companhia das Letras).

“Joguei-me sobre ele, numa última esperança”, escreveu Alzira, anos depois. “Apenas um leve sorriso me deu a impressão de que ele me havia reconhecido”, completou a filha, influente conselheira do pai e que acompanhava o dia a dia do Catete a ponto de enfrentar cara a cara ministros e auxiliares, cujas ações e relações com o chefe passavam longe da lealdade esperada de um integrante de primeiro escalão.

O tiro no coração era o desfecho fatal de uma grave crise política e militar que havia começado meses antes e atingido o ápice nos dias anteriores à tragédia. O governo Vargas se esfarelava diante das denúncias de corrupção e os ataques proferidos pela imprensa e políticos, em especial pelo principal líder da oposição e do partido oposicionista, a União Democrática Nacional (UDN): o jornalista e deputado federal Carlos Lacerda.

Oposição udenista

A “banda de música da UDN”, como era conhecida a barulhenta e virulenta oposição udenista, era alimentada diariamente por meio dos violentos discursos antigetulistas proferidos por Lacerda nas sessões legislativas, nas entrevistas concedidas às rádios e nos editoriais escritos pelo jornalista em seu jornal, a Tribuna da Imprensa.

“O Getúlio era absolutamente incompatível com um regime democrático”, destilaria o amargurado opositor Lacerda, anos depois, em suas memórias. A situação política no país, que já era muito ruim, piorou de vez com o atentado a tiros contra Lacerda, ocorrido na madrugada do dia 5 de agosto, próximo à sua casa, na Rua Tonelero, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Os tiros, que feriram levemente o udenista, porém, mataram o major Rubens Vaz, que o acompanhava, foram atribuídos pela oposição a pistoleiros enviados por gente graúda do Catete, algo que nunca ficou provado. Mas elevou a tensão política a níveis estratosféricos.

“O estopim de todo o processo que levou ao suicídio de Vargas foi o atentado a Carlos Lacerda. E vale dizer que até hoje não ficaram claras as circunstâncias do episódio”, explica o cientista político e historiador Paulo Ribeiro da Cunha, professor livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Militares e Militância: uma Relação Dialeticamente Conflituosa (Editora Unesp).

“O próprio Lacerda deu três versões diferentes referente ao que aconteceu naquela madrugada dos tiros”, completa Ribeiro da Cunha. No Palácio do Catete, a notícia sobre o ocorrido na Rua Tonelero chegou logo pela manhã e caiu como uma bomba.

“Estes tiros me atingiram pelas costas”, disse Getúlio, ao saber do atentado. “Meu pior inimigo não poderia ter engendrado nada mais grave contra o governo”, completou o presidente, com o semblante tenso e com visível mau humor, algo raro de se ver no carismático líder populista.

A deterioração do quadro político também azedou o clima nos quartéis, onde militares dissidentes conspiravam contra o governo há tempos. “O fator mais direto (que levou à morte de Getúlio) foi a campanha civil-militar desencadeada para depor o presidente”, explica o pesquisador Murilo Leal Pereira Neto, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Calos Lacerda / Crédito: Divulgação/Arquivo Nacional

Pereira Neto cita, como um dos fortes elementos que contribuíram para a crise político- -militar daquele ano, a divulgação, em fevereiro de 1954, do “Memorial dos Coronéis”, um documento assinado por 82 coronéis e tenentes-coronéis atacando o reajuste de 100% do salário mínimo, que havia sido concedido pelo governo no ano anterior.

Em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente foi rejeitado por ampla maioria na Câmara dos Deputados, mas cumpriu o propósito de desgastar o Executivo e mobilizar a oposição. Havia ainda as diversas denúncias de corrupção, que a UDN chamava de “mar de lama” envolvendo o governo Vargas em favorecimentos e negociatas.

Mar de lama

“O atentado a Lacerda envolvendo o guarda-costas de Vargas, Gregório Fortunato, foi, obviamente, atribuído ao presidente, e possibilitou a aglutinação da frente golpista, levando um tremendo reforço moral para a campanha”, diz Pereira Neto, que acrescenta outros fatores indiretos para a crise no país, tais como: a crise cambial decorrente da Guerra na Coreia (1950-1953), retomada das greves e a mudança da política externa praticada pelos Estados Unidos naquele período, que restringiu financiamentos externos e passou a atacar a indústria petrolífera brasileira. O objetivo era defender as multinacionais norte-americanas do setor de petróleo.

Dentro do governo, a situação também degringolava a olhos vistos, com suspeitas de conspirações e traições por todos os lados, envolvendo personagens como o vice-presidente, Café Filho, e ministros militares.

Em meados de agosto, Café Filho chegou a propor a renúncia de ambos – presidente e vice – para restabelecer a normalidade institucional. Outro manifesto elaborado por conspiradores na caserna, subscrito por 27 generais, solicitava o afastamento do presidente eleito democraticamente.

A hipótese da renúncia foi rechaçada por Getúlio, que respondeu ao seu vice: “Não renunciarei de maneira alguma. Se tentarem tomar o Catete, terão de passar sobre o meu cadáver”. Conforme confidenciou a Alzira momentos antes de morrer, Getúlio sabia que Café Filho, naquela altura dos acontecimentos, já negociava cargos no primeiro escalão, para serem ocupados assim que assumisse a cadeira do chefe.

No dia 23 de agosto, a situação chegou a um ponto insustentável. O Rio de Janeiro amanheceu com o clima pesado, que em nada combinava com a brisa que soprava na Cidade Maravilhosa. Aviões pilotados por militares insubordinados davam rasantes sobre o Palácio do Catete, para intimidar quem estava lá dentro.

O ministro da Justiça, Tancredo Neves, fiel getulista, propôs a decretação do estado de sítio e imediata prisão dos golpistas. “Mesmo um homem moderado, conhecido pelo equilíbrio e comedimento, chegara à conclusão de que não havia outra forma de o governo se sustentar nas próximas 24 horas”, diz Lira Neto, referindo-se a Tancredo, que seria eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral, em 1985, mas morreria por complicações de saúde antes de sua posse.

A situação no Exército se complicara no decorrer do dia e, diante das informações sobre a situação que beirava o caos político e a iminência do golpe, Getúlio recebeu no começo da noite o ministro da Guerra, Zenóbio da Costa, e o marechal Mascarenhas de Morais, para ouvir deles o que ele já sabia: o agito tomava conta dos quartéis e o governo estava prestes a cair.

Os rebeldes de farda não eram tantos assim, a conspiração estava concentrada nos gabinetes do alto escalão e a situação poderia ser devidamente controlada, bastando para isso uma ação firme da cúpula militar, no sentido de acalmar os ânimos e punir os amotinados. Mas não foi o que aconteceu.

Última reunião

Informado pelos ministros militares de que algo grave poderia acontecer a qualquer momento, o presidente convocou todo o ministério para uma reunião naquela mesma noite.

Soltando uma baforada no charuto, o político chegou a comentar calmamente com Tancredo, a quem deu sua caneta-tinteiro: “Não se preocupe, tudo vai acabar bem”.

Alguns dias antes, Alzira havia interpelado o pai de maneira enérgica por causa de um rascunho, encontrado no meio dos papéis de despachos, onde se lia uma frase com a letra de Getúlio: “À sanha de meus inimigos, deixo o legado de minha morte”. Na ocasião, o patriarca acusou a filha de bisbilhotice, desconversou sobre o assunto e ficou com o bilhete.

Pijama e revólver usados por Vargas no dia em que cometeu suicídio / Crédito: Wikimedia Commons / Yanguas

A derradeira reunião ministerial começou na madrugada do dia 24 de agosto. Às duas horas, Getúlio sentou-se na cabeceira da longa mesa confeccionada em madeira nobre do salão de despachos. Seus familiares também estavam presentes.

Após ouvir os ministros, um a um, e diante da falta de consenso sobre os próximos passos para debelar a crise – renúncia, licença provisória ou estado de sítio –, o caudilho deu o seu veredicto: “Já que os senhores não decidem, eu vou decidir. Minha determinação aos ministros militares é no sentido de que mantenham a ordem e o respeito à Constituição”, afirmou.

“Nessas condições, estarei disposto a solicitar uma licença, até que se apurem as responsabilidades. Caso contrário, se quiserem impor a violência e chegar ao caos, daqui levarão apenas o meu cadáver”, afirmou, encerrando a reunião.

Às 4h20, Getúlio deixou o salão de despachos e dirigiu-se ao terceiro andar. Pela manhã, por volta de 7 horas, ainda foi visto por Alzira cruzando os corredores, arrastando os chinelos, de pijama e com um envelope na mão.

Nos seus últimos diálogos naquele começo de manhã fatídica, o irmão do presidente, Benjamin Vargas, o Bejo, trouxe informações frescas de que a situação não se acalmara nos quartéis e que a renúncia era exigida como única forma de restabelecimento da normalidade. “Então estou deposto?” perguntou Vargas a Bejo, completando em seguida: “Vivo, eu não me entrego”.

Como fazia todas as manhãs, o camareiro pessoal Barbosa dirigiu-se ao aposento presidencial para fazer-lhe a barba e arrumar as roupas do dia. Foi dispensado pelo chefe, que disse que pretendia dormir um pouco mais. Eram 8h30. Minutos depois, ouviu-se o barulho fatal que sacudiria o país de norte a sul. O presidente estava morto.

Em seu último gesto trágico, um acuado presidente, pressionado por todos os lados para renunciar ao cargo, deu sua cartada final com a própria vida e, conforme escreveu na famosa carta-testamento, saiu da vida para entrar na História.

“O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei minha vida. Agora ofereço minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”, diz o trecho final da carta.

O clima político virou e a reação da população foi imediata, transformando um presidente acuado e quase deposto do cargo ao qual fora eleito em mártir. Uma multidão saiu às ruas e criou-se um clima de comoção geral em toda a nação. Quando as rádios começaram a noticiar a morte de Getúlio, a massa urbana se dirigiu ao Palácio do Catete e a estimativa é que pelo menos 100 mil pessoas compareceram ao velório aberto ao público.

Ao menos 100 mil pessoas compareceram ao velório de Vargas / Crédito: Agência Brasil / Arquivo Nacional

 

O cortejo que levou o caixão de Vargas para o sepultamento em São Borja ocupou todo o Aterro do Flamengo, em direção ao Aeroporto Santos Dumont. Jornais imprimiram várias edições extras ao longo do dia 24 de agosto. A Última Hora, de tendência getulista, vendeu mais de 750 mil exemplares no Rio de Janeiro, recorde na época.

“O povo arrancava os exemplares das camionetas, que ficavam cheias de dinheiro”, registrou Samuel Wainer, dono da Última Hora, em suas memórias. Por outro lado, jornais oposicionistas e órgãos ligados à UDN, como a Tribuna da Imprensa, foram ameaçados ou depredados. Carlos Lacerda refugiou-se na casa de um amigo militar, na Ilha do Governador, e logo depois seguiu para a Europa com a família.

“O suicídio de Vargas exprimia desespero pessoal, mas tinha também um profundo significado político. O ato em si continha uma carga dramática capaz de eletrizar a grande massa”, escreveu o historiador Boris Fausto em seu livro História Concisa do Brasil (Edusp).

Outros historiadores e cientistas políticos concordam que o suicídio pode ter sido o último ato político do caudilho gaúcho que, inclusive, adiou o golpe militar que fermentava em parte das Forças Armadas em pelo menos dez anos, até 1964.

“Talvez ele tenha percebido que, diante daquela situação e prestes a ser deposto, ao se matar seria criada uma comoção nacional”, raciocina a historiadora Tania Regina de Luca, professora da Unesp e uma das autoras do livro História da Imprensa no Brasil (Editora Contexto). “O político pode ter matado o homem”, conclui.

Um ato político

"O suicídio de Vargas mudou totalmente o quadro político da época. A população saiu às ruas e o golpe militar em curso foi imediatamente abortado”, explica Ribeiro da Cunha. Ele lembra, porém, que o clima de instabilidade envolvendo os militares prosseguiu durante os governos seguintes, com diversas tentativas de tomada de poder à força.

Juscelino Kubitschek foi eleito [em outubro de 1955] e teve de assumir no bojo de um golpe militar, conhecido como Novembrada”, diz Cunha. Meses depois, exercendo a presidência, JK teve de enfrentar outro motim militar, a Revolta de Jacareacanga, ocorrida em 1956.

+ Juscelino Kubitschek, o presidente por trás da modernização do Brasil

Os reflexos da tragédia foram sentidos até na mídia da época, fortemente polarizada e com uma tênue linha que diferenciava a objetividade jornalística e as tendências políticas do dono da empresa.

“A crise política que levou ao suicídio de Getúlio Vargas pode ser vista como um divisor de águas”, explica a historiadora Alzira Abreu em um artigo do livro O Moderno em Questão: a Década de 1950 no Brasil (Editora Topbooks).

Segundo Alzira, a imprensa, que exacerbou a linguagem violenta e apaixonada utilizada no tratamento dos temas políticos, a partir desse acontecimento trágico buscou maior objetividade na construção e transmissão da notícia.

“A forma de fazer oposição a Vargas foi percebida por parte da imprensa de oposição como parcialmente responsável por esse drama político, e uma nova imprensa foi surgindo a partir de então”, completa a autora.

“Pode-se dizer que o último grande lance político de Vargas foi o suicídio. Graças a este ato, o populismo e também o sistema democrático, de alguma maneira nele contido, tiveram uma sobrevida”, diz Fausto.

Uma das demonstrações mais eloquentes dessa força ocorreu durante a festa da UDN que celebrava a possível deposição do presidente. Ao chegar a notícia do suicídio, alguém na alegre reunião udenista comentou algo assim: “Estávamos no meio da festa e puxaram a toalha da mesa”.

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