Em entrevista ao site Aventuras na História, o jornalista Daniel Navarro Sonim e o ex-funcionário do Juquery, José da Conceição, falaram sobre a rotina da instituição
Victória Gearini | @victoriagearini Publicado em 16/05/2021, às 09h13 - Atualizado em 27/05/2022, às 06h00
Fundado no dia 18 de maio de 1898, o Complexo Hospitalar do Juquery, localizado em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo, funcionou até o começo deste ano, quando os últimos pacientes foram transferidos para residências terapêuticas.
Ao longo das décadas, o local foi considerado o maior hospital psiquiátrico do Brasil. No entanto, durante anos, o complexo foi palco de episódios chocantes. Atualmente, apenas o Manicômio Judiciário continua ativo, hoje em dia chamado de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima.
Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História, os escritores da obra “Cinzas do Juquery: Os horrores no maior hospital psiquiátrico do Brasil", Daniel Navarro Sonim e José da Conceição, revelam que atrocidades foram cometidas dentro deste complexo hospitalar.
“Apresentamos a memória, a origem e trajetória do hospital por mais de um século em sua consequente influência, dentro e fora do Brasil, na assistência psiquiátrica. Acredito que o panorama do livro é trazer a memória e a história do Hospital Juquery. É o que propomos dentro da obra”, disse José da Conceição, escritor e ex-funcionário do local.
No dia 22 de maio de 1970, José da Conceição começou a trabalhar no Juquery, no cargo de atendente de enfermagem. Durante 18 anos atuou no Manicômio Judiciário, já nos nove anos restantes foi designado para trabalhar nos demais setores do Hospital Central.
Ao longo dos anos em que trabalhou no local, o ex-funcionário diz ter se deparado com casos de torturas, superlotação, falta de profissionais, condições insalubres e muito mais. Além disso, segundo o autor, era comum se deparar com pessoas sem preparo e qualificação sendo contratadas para trabalhar dentro do complexo.
“As condições eram péssimas naquele momento, porque não existia uma oferta de médicos psiquiátricos e a enfermagem era despreparada. Não havia um preparo especializado, voltado para psiquiatria. A superlotação e o número de pacientes se avolumavam. Então era difícil atender tantos casos diariamente”, disse o atendente de enfermagem.
José da Conceição contou que diversos casos lhe marcaram. Contudo, teve um em específico que mais lhe impactou, o obrigando a se afastar por alguns dias do serviço.
“Um rapaz, chamado José Carlos, estava numa cela. Quando eu a abri para fazer a higiene do local — porque nem banheiro tinha para fazer suas necessidades — estava sujo, com montinhos de fezes. Entretanto, ele estava dizendo que eram doces da cantina dele”, relembra o ex-funcionário.
O autor se recorda, ainda, que o interno era alegre e uma boa pessoa, mas que estava em uma condição desumana, sem perspectiva alguma. Tal fato o deixou extremamente abalado e triste.
De acordo com o ex-funcionário, os recursos básicos para o atendimento eram precários e os pacientes eram abandonados sem perspectiva, tido apenas como números. Além disso, ficavam largados na beira dos muros do complexo durante dias.
“Era uma tortura. No campo em que os pacientes entravam, muitos chegavam sem nenhuma identidade e sem logística, bastava qualquer pretexto. Eram chamados de ignorado um, ignorado dois, ignorado três e por aí vai. Então se tornou mesmo — pode-se dizer — um campo de concentração”, disse José da Conceição.
Em primeiro momento, o ex-funcionário contou que se posicionou como um soldado, que fazia o que a administração e o sistema pedia. Todavia, ele reforçou que nunca maltratou nenhum paciente e nem agrediu fisicamente.
“Hoje encaro que tudo estava errado, porque não havia uma elaboração em que pudesse haver uma continuação de trabalho para se chegar a um determinado fim, no sentido de melhorar o sofrimento, melhorar as condições, era sempre o pior. Então hoje vejo isso com tristeza. Eu até poderia ter feito mais, mas como? Porque eu era mandado e cumpria essas ordens no meu posto”, lamentou ele.
Segundo o jornalista Daniel Navarro Sonim, até a fundação do Manicômio Judiciário conviviam no mesmo espaço pacientes tidos como 'comuns' e 'criminosos'. Conforme revelou o pesquisador, o local foi inspirado, ainda, nos moldes europeus.
Contudo, a separação desses internos era um desejo antigo do primeiro fundador do Juquery, o Doutor Francisco Franco da Rocha. Mais tarde, o diretor Antônio Carlos Pacheco e Silva, fundou o Manicômio Judiciário, integrado a esse complexo.
“O Manicômio Judiciário nasceu com o intuito de separar os criminosos que não podiam responder pelos seus atos perante a Justiça comum, porque tinham cometido esses crimes motivados por problemas psicológicos, psiquiátricos ou mentais”, disse o autor.
No decorrer da década de 1970, o local entrou em colapso, após abrigar mais de 18 mil pacientes. De acordo com Daniel Navarro Sonim, qualquer pessoa fora dos padrões ou inimiga do Estado, era internada no Juquery.
“O projeto tinha a finalidade de segregar, separar e manter distante da capital de São Paulo, pessoas que eram consideradas fora dos padrões, tanto que o primeiro nome era Asilo de Alienados do Juquery. Alienados eram pessoas alheias à realidade, que fogem dos padrões, que na época, pensando por um viés mais econômico, elas não serviriam nem para trabalhar na lavoura do café e na indústria", disse ele.
Ainda segundo o autor, mulheres que fugiam dos padrões e eram consideradas “histéricas”, mães solteiras, pessoas LGBTQIA+, inimigas políticas do Estado e até mesmo negros, eram enviados para o Juquery.
"À medida que a cidade crescia, essa população de ‘indivíduos indesejados’ aumentava também. Então se via a necessidade de criar uma instituição que acolhesse as pessoas alheias a essa realidade em algum lugar. E na verdade, quanto mais longe melhor”, afirmou o jornalista.
Para Daniel Navarro Sonim, é fundamental conhecer essas histórias para compreender como a sociedade lida com tais assuntos nos dias de hoje.
"A questão histórica do Juquery está intrinsecamente ligada ao modo que a sociedade sempre tratou a loucura no Brasil", disse o especialista.
Segundo o jornalista, questões sobre a saúde mental da população em geral, sempre foram vistas como tabu perante a sociedade e, consequentemente, amplamente niglenciadeas pelo Estado.
"Se a gente procura um ortopedista quando quebra um osso, porque não podemos procurar um psicólogo quando estamos com algum problema? Qual é a diferença?", refletiu o especialista.
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