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Brasil

Entenda a diferença entre intervenção militar e ditadura

Saiba mais sobre as definições que ainda são alvo de grandes polêmicas

Fábio Marton Publicado em 29/08/2020, às 08h00

Uma intervenção militar é o envio de forças por um país ou grupo para resolver alguma crise. Por exemplo, a intervenção na Guerra da Líbia, em 2011, organizada pela OTAN, ou a intervenção atual contra o Estado Islâmico, desde 2014, que envolve duas coalizões rivais: a  Força-Tarefa Conjunta Combinada — Operação Resolução Inerente (CJTF–OIR na sigla original), coordenada pelos EUA, e a RSII, pela Rússia, com Síria, Irã e Iraque (daí a sigla).

Pode também acontecer dentro de um país: o México já enviou tropas a Acapulco para prender toda a polícia da cidade, acusada de ser corrompida pelo narcotráfico. 

Não existe a definição de intervenção militar na Constituição brasileira. A Constituição define as forças armadas como sob autoridade do Presidente, obrigadas a garantir os poderes constitucionais – isto é, o executivo, legislativo e o judiciário.

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Assim, ela não permite de forma alguma ao Exército derrubar o presidente, fechar o congresso ou prender juízes. Ou, de fato, tomar qualquer decisão estratégica por conta própria. Num regime democrático, generais não declaram guerra e não interferem sem ter ordens para isso. 

A dita intervenção de 64

O que aconteceu em 1º de abril de 1964 foi, do ponto de vista dos envolvidos, uma intervenção militar, com as Forças Armadas resolvendo a crise política do país. Destituindo seu próprio líder, o presidente João Goulart, de forma insubordinada e inconstitucional. Chamaram a isso de movimento e até de revolução. E ainda hoje seus defensores insistem que o resultado não foi ditadura, apesar de ser assim classificado por instituições internacionais ligadas ao governo dos EUA e à CIA (chegamos lá). 

Prometendo salvar a democracia do comunismo, populismo e corrupção, os militares expurgaram seus adversários do congresso e do funcionalismo público – o judiciário sendo o alvo maior – com o AI-1, em 9 de abril.

Seis dias depois, um congresso mutilado e intimidado elegeu, indiretamente, seu primeiro presidente, Humberto de Alencar Castelo Branco. Basicamente foi aclamação: 361 votos contra 5 para os outros dois que concorriam, Juarez Távora e Eurico Gaspar Dutra (ambos generais).

Castelo Branco, em tese, só ficaria até as próximas eleições, em outubro do ano seguinte. Mas essas foram canceladas pelo AI-2, que acabou com as eleições diretas para presidente e forçou o país a ter só dois partidos: o pró-regime, a Arena, e o da oposição consentida, o MDB.

Até 1982, os militares manteriam maioria na câmara, que sempre levava seu escolhido ao cargo. Afinal, eles controlavam os direitos políticos de todo mundo. Então aconteceram as primeiras eleições pluripartidárias, com o partido dos generais, rebatizado para Partido Democrático Social (PDS) ainda elegendo a maior bancada, com 49,06% (contra 55% em 1978).

Mas o PDS racharia em 1985, com uma ala formando a Frente Liberal (FL, depois PFL) apoiando a candidatura do opositor Tancredo Neves (e indicando como vice José Sarney). O candidato do regime, o civil Paulo Maluf, perderia por 480 a 180 votos. Tancredo morreria sem assumir. E, mesmo com Sarney sendo egresso da Arena/PDS, isso foi considerado o fim do regime. 

A opinião dos especialistas

O que é uma ditadura, afinal? Civil ou militar, é um termo controverso. Um líder autoritário quase nunca chama a si mesmo de ditador, mas presidente, primeiro-ministro, secretário-geral do Partido Comunista, ou títulos inovadores como Duce e Führer. Em quase todos os regimes chamados de ditaduras, existiam e existem eleições – inclusive com Stalin e Mussolini. Não existe uma classificação oficial dos regimes.

Cabe a instituições como a Freedom House (uma ONG patrocinada principalmente pelo governo dos EUA) e o estudo Polity IV (patrocinado pela CIA) publicar listas que determinam quanto um regime é mais ou menos ditatorial, baseados em fatores como imprensa livre, eleições competitivas e garantias constitucionais – como a de não ser preso ou assassinado extrajudicialmente.

Elas não falam em ditaduras, mas em países livres, parcialmente livres e não livres, no caso da Freedom House. Ou democracia, anocracia (semiditadura) e autocracia (regime de um homem só) para o Polity IV, baseado em uma nota entre 10 (pura democracia) a -10 (pura autocracia). Pela primeira, o Brasil hoje é um país livre, enquanto a Rússia é não livre, assim como a Venezuela. Pelo segundo, o Brasil é uma democracia (8), enquanto a Rússia é uma anocracia aberta (5), como a Venezuela (4).

Ambas as organizações já publicavam seus relatórios durante o regime militar do Brasil. Na era do AI-5 (1968-1978), éramos não livres pela Freedom House e uma autocracia quase absoluta (-9) para o Polity IV. Em 1984, nos estertores da ditadura, a Freedom House nos classificava com parcialmente livres e o polity IV como anocracia fechada (-4). 

Ditadura na democracia: no campo da Lei

A Constituição não permite depor o governo, mas permite o país ser gerido de forma autoritária, em casos de emergência. Uma intervenção federal, definida no capítulo 7 do título III é a suspensão temporária e parcial da autonomia de um estado, determinada pelos três poderes.

Uma intervenção federal não necessariamente é, mas pode ser militar. Este ano, no Rio, a lei foi ativada pela primeira vez desde a Constituição ser aprovada, há 30 anos. Ela se materializou pelo envio de tropas federais, com o general Walter Souza Braga Netto assumindo o controle da polícia, no cargo oficial de interventor federal.

Sociedade civil pede a intervenção, acreditando ser constitucional / Crédito: Divulgação

 

Também há os estado de defesa e de sítio, definidos nos artigos 136 a 139.

Um estado de defesa é uma ação local que limita vários direitos democráticos.

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º. O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I -  restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

II -  ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

[...]

§ 3º Na vigência do estado de defesa:

I -  a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;

Um estado de sítio é a versão mais extrema. Só deve ser chamado só em caso de o estado de defesa não ter dado resultados ou em caso de guerra. Permite ao governo:

Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

I -  obrigação de permanência em localidade determinada;

II -  detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III -  restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV -  suspensão da liberdade de reunião;

V -  busca e apreensão em domicílio;

VI -  intervenção nas empresas de serviços públicos;

VII -  requisição de bens.

Ambos são formas como a democracia pode agir como ditadura. Mas ambos exigem a aprovação do Congresso e Senado por maioria absoluta (2/3) e do judiciário. E ambos têm duração estritamente limitada.


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