Obra escrita por autor russo em meados do século 20 foi utilizada pela CIA como ferramenta de propaganda em meio à Guerra Fria
Giovanna Gomes Publicado em 03/11/2024, às 14h00
Durante a Guerra Fria, a CIA encontrou uma maneira diferente de tentar enfraquecer o regime soviético: a literatura. Em um esforço para influenciar a população da União Soviética, a agência de inteligência americana secretamente imprimiu e distribuiu cópias em russo do romance "Doutor Jivago", de Boris Pasternak.
Esse clássico da literatura, que narra a vida e os amores do médico e poeta Yuri Jivago, representava mais do que apenas uma história de amor. Para a CIA, era uma oportunidade única de provocar uma reflexão entre os cidadãos soviéticos sobre a falta de liberdade em seu próprio país no final dos anos 1950.
Na década passada, mais de 130 documentos revelaram os detalhes desse plano da CIA. Conforme relatado no livro "The Zhivago Affair", dos jornalistas Peter Finn e Petra Couvée, a obra foi vista pela agência americana como um “trampolim” para discussões sobre liberdade e direitos individuais, temas desafiadores para a ética soviética, que priorizava o coletivo sobre o indivíduo.
Para Pasternak, que vivia na Rússia, parecia impossível ver seu livro publicado em seu próprio país. Considerado pelas autoridades soviéticas como um ataque à revolução de 1917, o romance nunca recebeu a aprovação oficial para publicação, conforme o portal The Guardian.
Determinado a compartilhar sua obra, Pasternak entregou uma cópia do manuscrito a um agente editorial italiano. O livro foi, então, publicado no Ocidente, ganhando repercussão internacional.
Não demorou muito para que a CIA reconhecesse o potencial de "Doutor Jivago" como uma poderosa ferramenta de propaganda, especialmente pelas circunstâncias em que foi publicado.
Segundo um dos documentos da agência, havia uma "oportunidade de fazer os cidadãos soviéticos se perguntarem o que há de errado com seu governo, quando uma bela obra literária do homem reconhecido como o maior escritor russo vivo não está disponível em seu próprio país em sua própria língua para seu próprio povo ler."
Com essa perspectiva em mente, a CIA tomou medidas para produzir cópias do livro, ocultando qualquer vínculo com o governo dos Estados Unidos. Assim, uma edição em capa dura foi publicada na Holanda, enquanto uma versão em miniatura em brochura foi impressa na própria sede da CIA.
O plano para distribuir Doutor Jivago aos soviéticos foi cuidadosamente orquestrado. Durante a Exposição Universal e Internacional de Bruxelas de 1958, agentes entregaram cópias a cidadãos soviéticos presentes no evento. Além disso, “agentes que [tiveram] contato com turistas e autoridades soviéticas no Ocidente” também foram orientados a distribuir a edição em miniatura, repercute o The Guardian.
A agência ainda ofereceu orientações detalhadas sobre como turistas e cidadãos ocidentais deveriam conversar sobre o livro com os soviéticos, estimulando diálogos que destacassem a falta de liberdade de expressão no país.
Para ampliar o alcance do livro, a CIA recomendou que fosse publicado em diversas línguas e promovido globalmente para ganhar prestígio. O esforço deu frutos quando, em 1958, Boris Pasternak ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Entretanto, as autoridades soviéticas o pressionaram a recusá-lo.
Frances Stonor Saunders, autora do livro "Quem Pagou o Flautista: a CIA e a Guerra Fria Cultural", acredita que, embora seja sabido há tempos que a CIA publicou e distribuiu livros durante a Guerra Fria, o surgimento de documentos nos últimos anos fornece detalhes inéditos sobre o caso "Doutor Jivago".
Ela critica, porém, como o romance foi posicionado como um ataque direto ao sistema soviético, sem que houvesse uma consideração profunda sobre o próprio autor, até porque Pasternak não era um dissidente declarado, mas um artista que vivia de forma ambivalente sob o regime comunista.
Saunders ainda argumenta que o Ocidente, ao tratar Doutor Jivago como uma ferramenta de propaganda, ignorou o bem-estar do próprio Pasternak.
“Acho que o Ocidente, em nome das melhores intenções, fez exatamente o que queria com Boris Pasternak. Não estava interessado em seu destino, sua segurança, sua liberdade - passou por cima disso, sob os auspícios da CIA”, afirma a autora, que ainda questiona a decisão da CIA de divulgar esses documentos tardiamente: "A CIA só divulga informações quando é útil para eles", aponta.
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