Depois do governante vir para a colônia a fim de salvar sua pele de Napoleão Bonaparte, Portugal mergulhou em caos e conflito
Bianca Nunes Publicado em 10/09/2021, às 10h00
No dia 30 de novembro de 1807, um pequeno tremor de terra sacudiu Lisboa. Os portugueses interpretaram o fenômeno como um mau agouro. De fato, o futuro que se anunciava nada tinha de promissor.
Fazia apenas um dia que a família real havia deixado Portugal rumo ao Brasil, abandonando o povo à própria sorte. Sozinhos, os portugueses enfrentaram fome e crise financeira. E pior: tiveram de lutar por sete anos contra o mais poderoso exército da época – o francês, liderado por Napoleão Bonaparte.
A guerra deixou 250 mil mortos em Portugal. Tudo isso, no entanto, fortaleceu o povo, que conseguiu, além de vencer os franceses com a ajuda britânica, se reorganizar politicamente e trazer de volta seu rei.
Os primeiros anos após a partida foram de sofrimento. O clima nas ruas era de abandono e revolta. A população sentia-se trapaceada.
“Com a transferência da família real para o Brasil, quem tinha ligações com a corte, com o governo ou com qualquer instituição patrocinada por ele ficou sem renda nem carreira”, afirma o escritor e jornalista australiano Patrick Wilcken no livro "Império à Deriva", sobre o período em que o Rio de Janeiro foi a capital da Coroa portuguesa.
Para administrar o país durante sua ausência, Dom João nomeou um Conselho de Governadores. Mas logo que a esquadra lusitana deixou o porto, as tropas de Napoleão invadiram e tomaram Lisboa, destituindo os representantes do príncipe regente. Começava uma das mais sangrentas batalhas da história de Portugal.
A Guerra Peninsular, como ficou conhecida a sucessão de batalhas travadas pelo Exército francês na Espanha e em Portugal, durou sete anos – de 1807 a 1814. Comandado por Jean-Andoche Junot, o exército de Napoleão enfrentou uma luta diferente em solo português.
Dessa vez, o inimigo era o povo. Organizados em bandos e armados com espingardas de caça, facões e até utensílios de cozinha, os portugueses armavam emboscadas e usavam táticas de guerrilha. Junot apostava numa vitória fácil. Estava redondamente enganado.
Portugal foi invadido por cerca de 50 mil soldados. Mas a reação dos voluntários e do Exército, reorganizado pelos ingleses, foi imprevisível e inesperada. No meio da batalha, a Universidade de Coimbra virou um arsenal militar, e seu laboratório, uma fábrica de pólvora. “Portugal foi abandonado por dom João e seus conselheiros, mas a capacidade de revide da metrópole era visível em toda parte”, escreve Wilcken.
Em julho de 1808, na baía de Mondego, 13 mil soldados britânicos desembarcaram para lutar ao lado dos portugueses. Quem organizou a defesa na guerra, em dois momentos, foi Sir Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington. Anos mais tarde, ele seria o responsável pela mais importante derrota de Napoleão, em Waterloo.
As lutas arrastavam-se, com combates complexos e que, muitas vezes, não resultavam em vitória para nenhum dos lados. Foi só em março de 1814 que Portugal se viu totalmente livre da ocupação, dos saques e do caos.
“A guerra levara sofrimento a todas as partes do país. Lisboa enchera-se de refugiados, que subsistiam com doações britânicas de trigo e carne de peixe salgada”, afirma o escritor australiano.
Portugal e Espanha derrotaram Napoleão, mas não teriam chegado lá sem a ajuda britânica. A Grã-Bretanha surgiu, em 1814, como o grande vencedor do conflito e fez de Portugal uma espécie de protetorado militar.
Naquela época, o general William Carr Beresford, homem corpulento, que havia perdido um olho em combate, assumiu o comando do Exército português e trabalhou em conjunto com Londres e com o Rio de Janeiro. Na prática, era ele – um inglês! – quem mandava no país.
Quando a guerra acabou, uma nova questão veio à tona em Portugal. Agora, já não havia motivos para a corte ficar no Brasil. Devastada pela guerra, a metrópole viu-se dependente de sua antiga colônia, perdendo para ela o posto de centro político e econômico do império. “A questão era principalmente de amor-próprio”, escreve o historiador Oliveira Lima no livro D. João VI no Brasil.
Mais que ciúmes, a ausência da corte portuguesa criou um vazio de poder, preenchido pelas ideias liberais que circulavam na Europa desde o século 18.
“A ausência da família real foi o adubo necessário para o crescimento de ideias antiabsolutistas”, explica Washington Cunha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “A presença de ingleses e franceses em solo português representava pensamentos contrários ao absolutismo, que ainda vigorava em Portugal”.
É nesse contexto que, no dia 24 de agosto de 1820, a burguesia portuguesa irrompeu uma revolução liberal na cidade do Porto, que rapidamente se espalhou pelo país. Uma Junta Provisória convocou eleições para a composição de uma Assembleia Constituinte, que pressionaria dom João a retornar e jurar uma constituição. “O sentimento de abandono se transformou em revolta”, afirma Cunha.
No Brasil, Dom João recebeu um ultimato para voltar a Portugal. O historiador Oliveira Lima conta que o rei pediu a 13 pessoas que opinassem sobre o assunto. Oito disseram-lhe para despachar em seu lugar o príncipe dom Pedro. Mas o rei decidiu encarar sozinho o problema. Em 26 de abril de 1821, o rei partia rumo a seu país de origem – contrariado e sem ter a menor ideia do que lhe esperava do outro lado do Atlântico.
Muita água correu entre a mudança da corte para o Brasil e o retorno para Portugal. Foram sem dúvida treze longos anos.
No dia 29 de novembro, a corte portuguesa abandona o país e embarca rumo ao Brasil. Dom João, príncipe regente, deixa um Conselho de Governadores em seu lugar – destituído logo em seguida pelas tropas de Napoleão Bonaparte. A dinastia Bragança é declarada extinta.
Napoleão descumpre o Tratado de Fontainebleau, firmado em novembro de 1807 entre França e Espanha – o acordo previa a invasão e a divisão de Portugal entre os dois países. Em vez disso, invade Madri e anula a Casa Real espanhola, colocando seu irmão, José Bonaparte, no lugar do rei Carlos IV. Em represália, o Exército espanhol retira-se do território português. Cresce a resistência ao imperador francês. Sua derrota é uma questão de tempo.
Engenheiros ingleses dão início à construção de fortificações em Lisboa, que começavam na beira do rio Tejo e estendiam-se até o Atlântico. São 152 linhas de redutos de alvenaria, num cinturão de 46 quilômetros ao redor da capital. O obstáculo prova-se intransponível. Em 1810, o Exército francês tenta cruzar a barreira com 70 mil homens. Não consegue e é obrigado a recuar, abrindo caminho para os portugueses e britânicos avançarem em direção à fronteira francesa.
Depois de uma trágica derrota militar na Rússia, Napoleão é obrigado a renunciar e acaba exilado na ilha de Elba, Itália. Enquanto isso, soberanos de toda a Europa reúnem-se no Congresso de Viena, para legitimar a volta do poder absoluto. A monarquia é restaurada na Europa e Luís XVIII – irmão do rei guilhotinado Luís XVI – assume o trono. Embora exilado, Napoleão mantém-se informado e sabe que o novo regime é frágil.
Napoleão foge da ilha de Elba, retoma o poder na França e dá início a um governo que durará cem dias. Em uma das mais famosas batalhas da história, a de Waterloo, na Bélgica, é derrotado pelo Exército britânico comandado pelo duque de Wellington. Ao abdicar pela segunda vez, acaba preso na ilha de Santa Helena, uma colônia britânica no Atlântico Sul. Morre em 1821, vítima, supostamente, de câncer – mas há quem diga que Napoleão foi envenenado com arsênico.
Feita a paz, os portugueses esperam pela volta da família real. Mas a corte permanece no Brasil e Dom João ainda eleva a colônia à condição de reino – o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Por aqui, irrompem comemorações e discursos de exaltação ao soberano. Lá, o povo sente-se novamente traído e abandonado.
Dom João é aclamado rei, dois anos depois da morte da rainha dona Maria. O atraso da coroação tem muitas explicações. Primeiro, o clero precisava declarar que a rainha já tinha deixado o purgatório. Além disso, era preciso trazer de Lisboa os assistentes que cuidariam do ritual. E o mais importante: o governo esteve ocupado demais com a Revolução Pernambucana de 1817 – um movimento contra a opressão da Coroa portuguesa.
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