Enquanto na Europa já havia a ideia de banir o mau cheiro, por aqui a fedentina era plenamente admitida
Mary Del Priore Publicado em 13/02/2019, às 08h00
Hábitos de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os habitantes da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a limpeza. E isso durante séculos.
O viajante inglês John Luccock, no início do século 19, ainda afirmava que as abluções frequentes não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas, todos eles muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a bênção de uma lavada [...] os cubículos em que se acham os leitos raramente são abertos à influência purificadora do ar livre, nem tampouco expostas ao sol as camas, embora úmidas de suor”.
A sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, junto com a preocupação de “oxigenar os ares” e de banir definitivamente o mau cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo, que entre nós ainda eram plenamente admitidos.
Teóricos já advertiam para os riscos de a gordura tapar os poros, retendo “humores maléficos e imundícies”, das quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda que os antigos acreditavam funcionar como um verniz protetor contra doenças, na verdade bloqueava as trocas “aéreas” necessárias ao organismo.
A mudança provocou uma passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos odores animais – âmbar, almíscar – saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os utilizavam não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor.
Na Europa “civilizada”, a emergência de uma nova forma de pudor, porém, ameaçava essa tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de lavanda e rosas. O bidê foi introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas se revestiam de erotismo. Talcos perfumados e outros pós, à base de íris, flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro e o dos outros. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou coisa de roceiras e prostitutas.
Entre nós, o âmbito da higiene íntima feminina, de difícil pesquisa histórica, foi abordado pelo poeta baiano Gregório de Matos. No final do século 17, ele escreveu sobre a carga erótica do “cheiro de mulher”. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era um deles. O poeta criticou uma mulher que o seduzira apesar de lavar a vagina antes do ato sexual.
Lavar a carne é desgraça
Em tida a parte do Norte
Porque diz, que dessa sorte
Perde a carne o sal, a graça;
E se vós por essa traça
Lhe tirais o passarete
O sal, a graça, o cheirete,
Em pouco a dúvida topa
Se me quereis dar a sopa
Dai-ma com todo o sainete
O cheiro de almíscar ainda agradava por estes lados do Atlântico onde o bidê só aportou no século 19. Mas lavar o corpo com quê? Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o conduzia da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição por blasfêmia.
Embora longe da higienização de nossos dias, certa sensibilidade ao cheiro do corpo já estava instalada. Os processos de divórcio apresentados à Igreja Católica revelam traços da intolerância de cônjuges em função do odor. O mau cheiro impedia suas relações sexuais.
Em São Paulo, no século 18, por exemplo, Ana Luísa Meneses acusava o cônjuge de “pitar tabaco de fumo”, que conferia-lhe um “terrível hálito que se faz insuportável a quem dele participa”. Enquanto Maria Leite Conceição reclamava dos “pés e pernas inchadas do seu”, “das quais exalava um mau cheiro insuportável”. Como se vê, o embate conjugal não passava longe de alguns critérios de sensibilidade feminina.
Por Mary Del Priore - Doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas - Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.
Dom Antônio de Orleans e Bragança recebia a "taxa do príncipe"?
Banco Central sob Ataque: Veja a história real por trás da série da Netflix
Outer Banks: Série de sucesso da Netflix é baseada em história real?
O Rei Leão: Existe plágio por trás da animação de sucesso?
Ainda Estou Aqui: O que aconteceu com Eunice Paiva?
Ainda Estou Aqui: 5 coisas para saber antes de assistir ao filme