Crânios por todas as partes - Reprodução
Paris

Império da morte: Catacombes, a Paris dos mortos

Com ruas, surpresas e riscos, as profundezas da capital francesa são quase outra (e perigosa) cidade

Texto Diego Inglez de Souza / Ilustração Pedro Kastro Publicado em 06/10/2019, às 09h00

Há outro mundo abaixo da capital francesa. Minas desativadas, catacumbas com milhões de ossos, estações de metrô abandonadas, bunkers nazistas e até uma "praia". Paris ainda se chamava Lutécia, como a batizaram os romanos, e o subsolo da cidade já era agitado. Seus túneis abrigaram membros da Resistência Francesa durante a 2ª Guerra e hoje são cenário de festas. É dali que sai um dos produtos mais conhecidos da França: os famosos cogumelos parisienses.

Desde o Império Romano, o solo de Paris, farto de calcário e gipsita, foi usado como fonte de material de construção. Durante a Idade Média, as pedras de calcário grosso locais serviram para construir a grandiosa Catedral de Notre Dame, além de conventos, pontes e muralhas de defesa.

Conforme a cidade crescia e o material da superfície se esgotava, os mineiros cavavam sob a terra e o resultado foi um imenso complexo de galerias subterrâneas que acabaria por ter vários usos ao longo do tempo. Elas ficaram conhecidas como carrières (jazidas).

Ossos de vítimas da revolução francesa / Crédito: Reprodução

O fim do século 18 foi crucial para a história da França e também para o subsolo parisiense. Antes da Revolução Francesa (1789), vários desabamentos de prédios deram o alarme: os vazios deixados pela mineração tornavam o subsolo instável e comprometiam a segurança e o crescimento da cidade. Na antiga rue d"Enfer, a ("rua do inferno"), perto do atual bulevar St. Michel, houve dois grandes desabamentos com dezenas de vítimas, o maior deles em 17 de dezembro de 1774.

O segundo foi em 4 de abril de 1777, por coincidência o mesmo dia em que se criou a Inspetoria Geral das Carrières. A IGC, dirigida por engenheiros e militares, surgiu para cartografar, avaliar os riscos e estabilizar as carrières para evitar novas tragédias. As inscrições do nome das ruas nas galerias recuperadas pela IGC revelam uma geografia paralela da cidade, referências há muito desaparecidas, enterradas pelo tempo. Uma espécie de Google Earth pelo lado de dentro.

Cadáveres

Na mesma época, os cemitérios da cidade estavam muito além de sua capacidade, e o acúmulo de restos mortais gerava graves problemas de saúde pública. O Cimetière des Innocents amontoava cadáveres 2,5 m acima do nível da rua.

A chuva e a neve faziam escorrer a carne apodrecida dos corpos pelas ruas e pelo solo, atingindo o lençol freático. A solução foi transferir os esqueletos para as galerias, dando origem às célebres catacombes, concebidas e organizadas como um monumento à morte.

Placas com versos alusivos à efemeridade da vida e evocando os antigos cemitérios permeiam os arranjos dos ossos de aproximadamente 6 milhões de mortos parisienses, rigorosamente anônimos entre trabalhadores, revolucionários, poetas, pintores... Hoje trata-se de uma concorrida atração da cidade, visitada por turistas, que fazem fila para conhecer o império da morte.

O espaço e o percurso é de 1,7 km - a única parte oficialmente visitável dos mais de 300 km de catacumbas não sancionadas e potencialmente letais - mas ainda assim invadidas por aventureiros. 

Muitos degraus nos túneis das carrières dão uma boa noção do que eram no princípio e de como foram as intervenções da IGC. Além de um leve aroma de formol e da água que escorre diretamente do "céu" da carrière - o teto escavado na pedra -, nada incomoda fisicamente o visitante. A iluminação é precária, mas permite examinar milhares de crânios, fêmures e tíbias - quebrados, perfurados por tiros, vandalizados e recobertos por todo tipo de mofo, poeira e pátina de 200 e tantos anos. É proibido tocar nelas.

Visitantes no subsolo / Crédito: Reprodução

Port Mahon é um destaque do percurso e leva a um célebre personagem das catacumbas. Beausejour, cujo verdadeiro nome era Decure, ex-militar e funcionário da IGC, que esculpiu entre 1777 e 1782 maquetes dos fortes e portos da ilha de Minorca, onde esteve cativo dos ingleses. Ironicamente, Decure morreu vítima de um desabamento enquanto escavava uma escada que permitiria o acesso dos visitantes à sua obra.

Outra figura célebre da história do submundo parisiense é a de um porteiro do hospital militar de Val-de-Grace. Philibert Aspairt teria se perdido em 1793 nas galerias em busca do licor do Convento de Chartreux. Seus restos mortais foram achados 11 anos depois, segundo o monumento construído em sua memória. Há quem duvide de sua existência, baseando-se na hipótese de a fábula ter sido inventada pela IGC para desestimular visitantes indesejados.

Modernização

Por causa dos acidentes, a extração dos minerais do subsolo é proibida desde 1815. Os subterrâneos foram ocupados por redes de esgotos e de distribuição de água com a modernização da cidade promovida a partir de 1860 pelo barão Haussmann. Desde sua implantação, os esgotos estão abertos ao público.

Lá se aprende sobre o plano de saneamento do engenheiro Belgrand e se veem as diversas máquinas que auxiliam o penoso, porém essencial, trabalho dos égoutiers, os sujeitos que limpam os esgotos. Há várias fases de tratamento da matéria in natura. Quando a coisa é bruta, o odor e a imagem não são de fácil digestão.

Para abastecer a população de água limpa, poços foram perfurados. Eles seriam aproveitados posteriormente para a instalação de banhos e piscinas públicos. Diversas brasseries instalaram-se sobre as galerias, já que seus vazios úmidos e frescos eram propícios para a fabricação de cervejas e o cultivo de cogumelos, que nasciam no esterco dos cavalos que circulavam nas ruas. Surgia o popular "champignon de Paris".

Com o aparecimento do metrô, em 1900, o subsolo passou a fazer parte da rotina dos moradores - e ficou ainda mais com cara de queijo suíço. Redes de água, esgotos, eletricidade, gás, vapor, correio pneumático a ar comprimido e, mais recentemente, trens metropolitanos embaralham-se entre o pavimento e as carrières.

O canal de Saint Martin conduz barcos e passageiros por quilômetros sob a terra e a Coluna da Bastille. Até mesmo um córrego, o Bièvre, desapareceu da paisagem, engolido pelas entranhas da cidade.

Mais crânios / Crédito: Reprodução

A partir dos anos 1930, com o aumento da tensão política internacional, abrigos antiaéreos começaram a ser instalados debaixo da terra. Estações de metrô foram transformadas em abrigos. Algumas foram fechadas no começo da 2ª Guerra e nunca mais reabriram - são as estações fantasma. Durante o conflito, os alemães construíram bunkers, de onde controlavam a ocupação de Paris, como o da Gare de l"Est, mantido preservado e oculto até os anos 1990. As forças da Resistência Francesa também se organizavam no subsolo, no Posto de Comando Rol, de onde partiram ações contra os invasores nazistas em 1944.

No pós-guerra, as caves e criptas de St. Germain-des- Près e do Quartier Latin foram ocupadas pelos jovens estudantes e pelo jazz. Era o começo da catafilia, a atração pelas catacumbas da cidade. As tampas de poços da IGC, os trilhos de um anel ferroviário desativado - a Petite Ceinture - e outras entradas clandestinas levam para o mundo subterrâneo, proibido para os mortais desde 1955.

Nos anos 1980, festas underground nas catacumbas se popularizaram. Abrigaram diversas manifestações musicais (rock, punk, reggae) e chamaram a atenção do poder público, que passou a bloquear as entradas e reprimir a frequência.

O mote dos jovens de maio de 1968 Sous le pavé la plage (Sob o pavimento, a praia), mais que um simples aforismo, pode ser uma referência direta a um dos espaços frequentados pelos catafilistas: a praia, uma grande sala com chão de areia decorada com uma reprodução da famosa onda do gravurista japonês Hokusai.

Gilles Thomas um dos maiores especialistas nas catacumbas. É representante de um movimento de cidadãos, técnicos e intelectuais voluntários que defendem sua preservação e promovem o estudo das catacumbas como uma fonte de história.

Thomas estabelece uma distinção entre os catafilistas, os turistas que descem pela primeira vez, e os cataclastes, que não respeitam o lugar e deixam marcas de suas efêmeras passagens. No encalço destes estão os cataflics, os membros da Eric (Equipe de Busca e Intervenção Judiciária), num trocadilho que mistura a gíria da superfície para policial (flic).

Muito material foi produzido sobre as carrières. Há livros, guias e filmes. Na internet, não faltam mapas, fotos e vídeos de festas e de percursos. Talvez seja o roteiro mais indicado (pelo menos, o mais seguro) para você fazer esse mergulho. Visitas clandestinas são proibidas e punidas com multa. Sem falar no risco de se perder por ali - e de se tornar mais uma pilha de ossos anônima esquecida nas catacumbas.


Saiba mais

Les Catacombes de Paris,  Gaspard Duval, 2011.

Paris Souterrain, Emmanuel Gaffard, 2007.

Atlas du Paris Souterrain - La Doublure Sombre de la Ville Lumière, Alain Clément 2001.    

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