Sobrevivente do Holocausto, Marcel Nadjari descreveu o terror de Auschwitz em carta que escondeu próximo a um crematório
Fabio Previdelli Publicado em 22/02/2023, às 20h00
Durante a Segunda Guerra Mundial, diversos Sonderkommandos foram estabelecidos em campos de concentração como Auschwitz, Treblinka, Birkenau, Belzec, Chelmno e Sobibor. O nome remete aos grupos de prisioneiros judeus que eram forçados a desempenhar uma variedade de tarefas nos campos nazistas.
Por conta de seu 'trabalho', os Sonderkommandos recebiam mais comida e também tinham o 'direito' de usar as roupas daqueles que se foram. Eles também gozavam de alojamentos em local separado — embora fossem vigiados constantemente. Importante ressaltar, porém, que os Sonderkommandos “eram vítimas, não algozes”, conforme aponta o historiador Gideon Greif.
Escolhidos por sua juventude e relativa boa saúde, o grupo era responsável por quase todos os processos dentro de um campo de concentração, desde a triagem dos recém-chegados — instruídos a se despirem e arrumarem suas roupas que seriam confiscadas pelos agentes da SS — até os procedimentos pós-câmara de gás, como revistar os mortos, raspar seus cabelos e tirar seus objetos de valor; como dentes de ouro
Os Sonderkommandos também realizavam a queima dos restos mortais e o descarte das cinzas. Eles eram vistos como um alívio aos agentes da SS, que não precisariam se preocupar com as tarefas exaustivas e psicologicamente destrutivas da Solução Final.
Muitos Sonderkommandos, aponta artigo da Jewsih Virtual Library, agiam para retardar suas próprias mortes ou pensando que poderiam proteger amigos e familiares. Mas o trabalho era cíclico. Quantos novos prisioneiros chegavam, eles eram substituídos e mortos como inúmeros outros.
Ainda segundo a Jewsih Virtual Library, em Auschwitz, por exemplo, trabalharam cerca de dois mil Sonderkommandos, sendo que apenas cerca de 100 sobreviveram quando o Exército Vermelho libertou o campo em 27 de janeiro de 1945.
Um deles, o judeu grego Marcel Nadjari, que tinha apenas 26 anos quando foi levado para a Polônia invadida, é responsável por um dos relatos escritos mais chocantes deixados pelos Sonderkommandos.
Se você ler sobre as coisas que nós fizemos, você vai dizer: como alguém poderia fazer isso, queimar seus colegas judeus?”, escreveu. “Foi isso que eu disse no início também, e pensei muitas vezes”.
Sabendo que a morte era questão de tempo, Marcel conseguiu preencher 13 páginas com seus relatos sobre como era a vida em Auschwitz. Os escritos foram guardados em uma garrafa térmica e enterrados perto do crematório III, segundo a Galileu em 2017.
A descoberta das anotações, porém, só foram feitas após 36 anos, em 1980. Na ocasião, a garrafa foi achada acidentalmente por um estudante de engenharia florestal que visitava a região. O compartimento estava enterrando a 40 centímetros do solo.
Devido ao passar dos anos e ao efeito da umidade da terra, os papéis foram danificados e apenas 10% do seu conteúdo era legível — a mensagem estava escrita em iídiche — língua derivada do alto alemão que era falada pelos judeus Ashkenazi; sendo uma espécie de germânico escrito com caracteres do alfabeto hebraico moderno.
Os escritos só foram restaurados a partir do interesse do historiador russo Pavel Polian, que escrevia uma nova versão do livro “Scrolls from the Ashes”, que relata o cotidiano dos Sonderkommandos.
Ao solicitar uma cópia da mensagem de Marcel Nadjari ao arquivo do Museu de Auschwitz, ele encontrou dificuldade para entender o que havia sido escrito. Por sorte, Alexander Nikityaev, especialista em tecnologia da informação, soube da pesquisa por meio de uma rádio russa e se propôs a ajudar. Com o auxílio do profissional, o conteúdo todo foi recuperado e a carta foi traduzida para o inglês.
Na mensagem, o judeu grego fala sobre as dificuldades enfrentadas no campo de concentração de Auschwitz, onde se estima que, pelo menos, 960.000 judeus foram mortos, segundo dados da Enciclopédia do Holocausto, do United States Holocaust Memorial Museum. “Nós todos sofremos coisas que a mente humana não pode imaginar”, disse Marcel em um trecho.
O crematório é um prédio grande com uma chaminé larga e 15 fornos. Abaixo do jardim há duas grandes salas. Uma é onde as pessoas tiram suas roupas, a outra é a câmara da morte”, aponta.
O judeu grego também deu detalhes sobre o funcionamento das câmaras de gás. “Pessoas entram nuas e quando completam 3 mil pessoas dentro, a sala é trancada e o gás liberado. Após seis ou sete minutos de sofrimento, eles morrem”.
“As embalagens de gás eram sempre entregues pelo veículo da Cruz Vermelha alemã com dois homens da SS. Eles jogam o gás por aberturas e meia hora depois nosso trabalho começa. Nós arrastamos os corpos daquelas mulheres e crianças inocentes ao elevador, que os levam para o forno”, documental ele.
Segundo Nadjari, “um ser humano acaba virando uns 640 gramas de cinzas”. Conforme a expectativa da época, Marcel esperava que morreria logo. “Eu não estou triste que vou morrer”, escreveu.
Mas eu estou triste porque eu não vou ter a chance de me vingar como eu gostaria”, disse o judeu, que era prisioneiro do campo de concentração de Mauthasen quando a Guerra acabou.
“Geralmente eu penso em seguir os outros e por um fim nisso. Mas a vingança impede que faça isso. Eu queria e quero viver, para me vingar da morte do meu pai, da minha mãe e minha querida irmãzinha”, relatou.
Marcel Nadjari foi um dos poucos Sonderkommandos que sobreviveu ao Holocausto. Após o fim da Guerra, o judeu grego voltou ao seu país natal. Em Tessalônica, Marcel se casou e teve um filho. Quando o menino completou um ano, em 1951, ele e sua esposa, Rosa, se mudaram para Nova York.
No fim da década, tiveram uma filha: Neli, nome dado em homenagem à “querida irmãzinha” de Nadjari. Marcel faleceu em 1971, quando tinha 53 anos. Suas cartas só foram encontradas nove anos depois. Marcel Nadjari, porém, jamais disse a alguém que as havia escrito, guardando apenas em sua memória todo o horror que viveu.
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