Grupo de ucranianos na década de 1940, em Arapongas, no Paraná - Arquivo pessoal
Ucrânia

Adaptação e perseguições durante o Estado Novo: a imigração ucraniana no Brasil

Da primeira até a terceira onda imigratória, mais de 70 mil ucranianos chegaram ao estado do Paraná

Izabel Duva Rapoport Publicado em 17/04/2022, às 00h00

Como a cultura de um povo se mantém e se reinventa ao longo dos séculos? A resposta para esta pergunta é uma das razões de ser da obra Ucrânias do Brasil – 130 Anos de Cultura e Tradição Ucraniana (editora Máquina de Escrever), produzida pelo jornalista Diego Antonelli, pela historiadora Talita Seniuk e pelo vice-presidente da Sociedade Ucraniana do Brasil, Andreiv Choma, que também é diretor cultural do Folclore Ucraniano Barvinok, de Curitiba, no Paraná, estado que abriga a maior comunidade de imigrantes e descendentes de ucranianos no país.

Protestos ocorridos na Ucrânia em 2014 /Crédito: Getty Images

 

No livro, os autores descrevem a chegada dessas famílias em três ondas imigratórias: final do século 19, pós-Primeira Guerra Mundial e pós-Segunda Guerra, e contam quais foram as dificuldades de adaptação e as perseguições que sofreram por aqui, além de revelar as principais tradições culturais e como são mantidas no Brasil.

Em tempos de uma possível quarta onda de imigração ucraniana em solo brasileiro, a AVENTURAS NA HISTÓRIA conversou com um dos pesquisadores, Diego Antonelli.

AH - Qual foi o marco inicial e como se deu a primeira onda do processo imigratório dos ucranianos para o Brasil?

A primeira onda começou em 1891, quando dez famílias tomaram coragem e enfrentaram uma desgastante viagem pelo Oceano Atlântico até desembarcarem no Rio de Janeiro depois de aproximadamente 40 dias de viagem.

Esses imigrantes pioneiros partiram da cidade de Zolochiv, na Ucrânia Ocidental, e
foram se estabelecer, sobretudo, no estado do Paraná – como na colônia Rio Claro, onde
posteriormente seria constituído o município de Mallet, e na colônia Santa Bárbara, em Palmeira.

A partir de 1895, os imigrantes ucranianos passaram a vir ao Brasil em maior número e se concentraram em quatro grandes núcleos, se agrupando nas cidades paranaenses de Mallet, Prudentópolis e Curitiba e no município catarinense de Itaiópolis.

Ao longo dessa época, outros ucranianos que chegaram também passaram a se alocar em outras cidades do Paraná, como União da Vitória e General Carneiro.


AH - Como estava a Ucrânia nesta época e por que estavam vindo pra cá? Havia uma contrapartida em terras brasileiras?

A chegada dos imigrantes, nessa época, foi reflexo das próprias campanhas dos governos brasileiro e paranaense que visavam ocupar vazios demográficos, buscar mão de obra para trabalho agrícola e, consequentemente, suprir uma crise de abastecimento de alimentos e bens primários que existia naquele período.

Essas campanhas em busca de imigrantes já eram feitas na época imperial. E também encontraram eco na realidade vivida pelo povo ucraniano. Havia vilarejos rurais ucranianos com traços de feudalismo em pleno século 19.

Regiões fronteiriças com outros países, como a própria Rússia (lado oriental) e Império Austro-Húngaro (lado ocidental), estavam em constante conflito pelo desejo da posse das terras do atual território ucraniano, que eram disputadas e consideradas uma das melhores da Europa para a agricultura.

Além disso, a Revolução Industrial, registrada entre os anos 1760 a 1840, provocou um grande êxodo rural e fez com que os pequenos produtores, que persistiram no ramo, não conseguissem competir com as grandes corporações e suas respectivas produções.

Para piorar, tornaramse constantes as ondas de fome ocasionadas pelo desgaste do solo, além da falta de terra, que estava – na maioria dos casos – em posse das famílias mais ricas. Logo depois vieram a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, impulsionando novas ondas de imigrantes.


AH - Para onde esses ucranianos foram e como eles se desenvolveram por aqui?

A vinda da chamada segunda grande onda de imigrantes ucranianos para o Brasil ocorreu justamente após a Primeira Guerra Mundial. Quem vinha ao país buscava uma vida melhor após os confrontos bélicos que assolaram a Europa. Durante essa época, a Ucrânia tinha conseguido uma breve independência política entre 1919 e 1921, mas logo foi dividida pelo Tratado de Riga.

Uma parte do território foi entregue à Polônia, Tchecoslováquia e Romênia e a outra se transformou na República Socialista Soviética da Ucrânia, integrando a então União Soviética.

Nessa fase, as motivações da imigração deviamse, sobretudo, à instabilidade política na região. A terceira grande corrente imigratória foi registrada após a Segunda Guerra Mundial, que terminou em 1945.

Nessa época, os imigrantes queriam fugir de um local que estava arrasado pela guerra. Somam-se a isso as constantes perseguições do governo da União Soviética, sob comando de Joseph Stalin.

Exibição exalta o Exército Vermelho Soviético na libertação da União Soviética em Kiev, Ucrânia /Crédito: Getty Images

 

Essa onda imigratória representou o maior êxodo dos ucranianos até então. Calcula-se que 200 mil pessoas deixaram o país natal. Muitos desses imigrantes eram operários, prisioneiros de guerra, refugiados políticos e soldados.

Estima-se que, da primeira até a terceira onda imigratória, mais de 70 mil imigrantes chegaram ao estado do Paraná, que foi o principal território a receber os ucranianos.


AH - Quais foram as principais dificuldades de adaptação dessas pessoas?

Os imigrantes desembarcavam em um país desconhecido, com um clima diferente, o que dificultava a adaptação para a agricultura. Não dominavam o idioma e viviam em meio a uma cultura totalmente diferente das que conheciam.

Para driblar essa situação, muitos imigrantes passaram a morar em um mesmo território, as chamadas “colônias”, o que ajudava e muito o povo ucraniano a manter preservada suas próprias práticas culturais.

Eles consideravam que seria mais fácil viver em terras brasileiras caso conseguissem preservar, ao menos em parte, seus hábitos e tradições trazidos da Europa.


AH - No livro, você e os outros autores falam sobre as perseguições que os ucranianos sofreram durante o Estado Novo (1937-1945). O que aconteceu neste período?

Em 1937, há o início oficial do período ditatorial de Getúlio Vargas no poder, com a
implantação do Estado Novo. A tolerância que até então existia no âmbito cultural e linguístico, e a manutenção entre os imigrantes dos sentimentos de pertencer a uma origem em comum, como o idioma, era vista na Era Vargas como algo que poderia comprometer uma suposta homogeneidade cultural do país.

Diante disso, ele instituiu a campanha de nacionalização, com a proposta de valorizar estritamente a cultura brasileira e minimizar a ação dos grupos formados por imigrantes.

Dentre as mudanças proporcionadas pelo Estado Novo e que afetou o cotidiano de todos os imigrantes que moravam no Brasil era a proibição de falar idiomas estrangeiros em público, inclusive durante cerimônias religiosas.

Em 1938, o governo proibiu ainda a circulação de livros estrangeiros e obrigou jornais e demais periódicos produzidos pelos imigrantes a publicarem só em português. Todas as escolas, antes batizadas com nomes ucranianos, passaram a ter, obrigatoriamente, nomes brasileiros.

Todas as aulas, consequentemente, deviam ser ministradas em português, sendo vetado o ensino de línguas estrangeiras para menores de 14 anos. Além disso, a legislação modificou o teor das disciplinas: o estímulo ao patriotismo, o uso de símbolos nacionais e a comemoração das datas nacionais passaram a fazer parte da rotina de todos os colégios.


AH - Vocês também contam sobre os principais elementos étnicos da cultura ucraniana, incluindo os ritos religiosos. Como eles são e como se deu o encontro desta fé com a religião dominante brasileira?

A maioria dos imigrantes ucranianos e seus descendentes seguem até hoje a Igreja Católica representada pelo Vaticano (grecocatólica), com o rito oriental, em que a missa é rezada em ucraniano e o padre fica de costas para o público.

Outra parte é formada por católicos ortodoxos. Quando os primeiros imigrantes desembarcaram no país, não havia padres ucranianos por aqui – muito menos que seguissem o rito oriental ou fossem católicos ortodoxos.

O encontro da fé com o catolicismo tradicional praticado majoritariamente no Brasil se deu normalmente – não houve embates ou rixas. Durante os primeiros anos da imigração, era nesse espaço religioso que se estreitavam os laços sociais, com celebrações aos domingos ou dia santo, em um ambiente que também servia como local de outras sociabilidades, como divertimento, cultura, casamentos etc.

Assim, a religião foi essencial para manter a cultura ucraniana. Nas primeiras fases da imigração, uma das solicitações urgentes dos ucranianos era, inclusive, ter um padre para poder ajudar a organizar a comunidade e dar as orientações religiosas para as pessoas.


AH - Outras tradições como culinária, artes e festas típicas foram mantidas também? Como se deu a perpetuação cultural dos imigrantes ucranianos por aqui?

Muitas tradições foram mantidas e são preservadas até hoje. A dança e a música, por exemplo, são alguns dos elementos étnicos que resistem ao tempo e que divulgam a cultura ucraniana para os demais membros da sociedade brasileira. Essa divulgação acontece atualmente com as apresentações culturais dos grupos folclóricos existentes no país.

Além disso, há no Brasil, em Mallet, no interior do Paraná, a celebração da festa de Ivana Kupala, da mesma forma como acontece em território ucraniano. Ela é realizada no início de julho, sendo adaptada aos festejos juninos de São João.

O ápice é a queima da fogueira com a presença dos personagens tradicionais de festa: o patrão e a patroa, bruxas e ciganas. Ao redor do fogo, as pessoas ecoam canções tradicionais.

Já a influência gastronômica ucraniana está na mesa de diversos brasileiros: pierogi (perohê), repolho recheado (holubtsi), sopa de beterraba (borscht), pãezinhos recheados (peryzhkê), entre outros. Há ainda o bordado típico ucraniano, as pêssankas, que correspondem a um ovo escrito e desenhado à mão que simboliza a vida e a prosperidade e tornou-se um dos símbolos da Páscoa.

Além dos rituais religiosos preservados pelos descendentes até os dias de hoje, em especial em casamentos, no Natal e na Páscoa.


AH - Acredita que teremos mais uma onda de imigrantes em solo brasileiro, considerando o atual conflito com a Rússia?

Difícil ter uma resposta certeira. Como a história muitas vezes se repete, é bem provável que uma nova onda imigratória de ucranianos desembarque no Brasil, especialmente no Paraná e Santa Catarina – estados que mantêm ligações próximas com a Ucrânia.

Muitos descendentes de ucranianos desses locais possuem parentes que vivem ainda em solo ucraniano. Então, não é de se surpreender caso isso ocorra.


AH - Vocês finalizam a obra com um “glossário cultural”, explicando termos e práticas ucranianos no Brasil. Poderia citar algumas das que mais chamam a atenção?

Produzimos esse “glossário” para cumprir um papel didático sobre o assunto em si e repassar às novas gerações os termos mais utilizados dentro da cultura
ucraniana. Vou citar três exemplos. Um é o korovai, que é um pão de formato arredondado e especialmente produzido para as celebrações de casamento.

O outro é o Kupalo, antigo deus da era pagã, associado ao amor, fertilidade, fartura e boa colheita. Com o Cristianismo, foi associado a São João Batista. E, por fim, o vesnyanky, rituais típicos da primavera, associados à crença da necessidade de se despertar a deusa antiga Lada, para que a natureza voltasse a florir.


AH - Qual a relação pessoal dos autores com a Ucrânia e qual a razão de ser da obra?

A Talita Seniuk é historiadora, professora e descendente de imigrantes ucranianos. O
Andreiv Choma é descendente de ucranianos e membro ativo da cultura ucraniana no país, já atuou como coreógrafo e diretor de dança e hoje é vice-presidente da Sociedade
Ucraniana do Brasil.

Eu sou um jornalista que atuo na produção de livros e reportagens sobre História.
Nós três decidimos nos unir e produzir uma obra em celebração aos 130 anos da imigração ucraniana no Brasil. É um livro que resgata e conta como é a cultura desse povo, que escolheu o Brasil para recomeçar sua vida, bem como aborda o processo histórico da imigração.


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