Os pracinhas durante o conflito - Reprodução
Segunda Guerra

A festa e a fúria: O dia a dia do Brasil na Segunda Guerra

Base americana, carro a lenha, pão de macarrão, blecautes e sirenes de bombardeio: saiba como era a vida dos brasileiros

José Francisco Botelho e Ricardo Lacerda Publicado em 03/09/2019, às 13h00

No caminho para a Europa, havia Natal. Nunca antes a cidade tinha recebido tantos turistas. Rapazes brancos que em poucos dias ficavam cor de laranja sob o sol, o que não espantava as moças da cidade. Elas cercavam os GIs para conhecer as novidades, inéditas na história do país. Whisky, Coca-Cola, Lucky Strike, foxtrot e bombardeiros de 16 toneladas.

Cotovelo geográfico

Hoje, quem anda pela orla em Natal chega a Miami. A praia de Miami, assim batizada graças a quem a frequentava 75 anos atrás. No auge da Segunda Guerra, tomar sol em Miami, Rio Grande do Norte, era um dos passatempos dos 10 mil soldados americanos que, entre 1942 e 1945, operavam as bases militares mais importantes dos aliados no Hemisfério Sul - o Campo de Parnamirim e a Base Naval de Hidroaviões.

Soldados americanos em Natal / Crédito: Domínio Público

 

Espécie de cotovelo entre a América e a África, o Nordeste brasileiro era considerado pelos americanos um dos pontos mais estratégicos do mundo. Os aviões militares, que partiam da Miami original, nos EUA, faziam escala em Porto Rico, Trinidad e Belém - para depois partirem rumo a Senegal, Togo e Libéria e daí à Europa, levando carga ou os próprios bombardeiros, como as fortalezas voadoras B-17 e B-24. Parnamirim virou o aeroporto mais congestionado do mundo, com até 800 pousos e decolagens por dia.

"Antes pacata e tranquila, a vida noturna de Natal alterava-se profundamente: era agora agitada e trepidante; bares e boates surgiam da noite para o dia", escreve o jornalista Murilo Melo Filho em seu livro de memórias, Testemunho Político. A americanização logo chegou aos trajes. Os homens abandonaram os ternos e as calças de risca-de-giz e passaram a vestir roupas cáqui de inspiração militar.

As calças de brim azul, usadas nas horas vagas por recrutas americanos, chegaram ao Brasil via Natal - embora só fossem se espalhar pelo país na década de 50. As moças - que antes só passeavam na companhia de pais e irmãos, vestidas com saias rodadas - agora andavam sozinhas, de calças compridas, mascando chicletes, o sinal inconfundível da modernidade.

Além dos soldados, Natal recebeu estrelas do showbiz, enviadas pelo governo dos EUA para levantar o moral das tropas. Humphrey Bogart veio animar a estreia de Casablanca no teatro da base, em 1942. A orquestra de Glenn Miller tocou no Cine Rex. Nos prédios das bases militares, sucediam-se festas onde os combatentes americanos se misturavam aos jovens - e, principalmente, às jovens - natalenses.

Além de cortejar as moças de família, os americanos eram frequentadores de prostíbulos como o Wonder Bar, a Casa da Maria Boa, a Pensão Estela e o Bar Ideal. (Para controlar as doenças venéreas, os médicos do exército passaram a examinar as moças da zona de meretrício e as garotas saudáveis ganharam atestados chamados love cards.) Em Natal, mais do que em qualquer outro lugar das Américas, a política da boa vizinhança era um tremendo sucesso.

A Política de Boa Vizinhança do presidente americano Franklin Roosevelt era uma doutrina para toda a América Latina, visando combater o antiamericanismo e as simpatias pelo Eixo por meio de trocas culturais patrocinadas pelo Estado. Quando o Brasil entrou na guerra do lado aliado, em 22 de agosto de 1942, assumiu mais que um compromisso militar. Os americanos deixavam de ser figuras de cinema para se tornarem presenças físicas. Os brasileiros, antes só exóticos, viraram exóticas figuras de cinema.

-O que é isso, senhora Miranda?

-Um reco-reco.

-Reco... reco? - a voz poderosa vinha em fortíssimo sotaque americano.

-Sim. E isto é um pandeiro.

-Pandeiro?

-Sim, um pandeiro. Algo errado, mister Welles?

-Nada. É que às vezes fico meio confuso.

Era 15 de novembro de 1942 e o diálogo ocorria em um estúdio no Rio de Janeiro, transmitido diretamente à radio CBS dos EUA. Ao redor do microfone estavam Orson Welles - a voz mais famosa do país, graças à transmissão de A Guerra dos Mundos, em 1938, e que havia acabado de estrear no cinema com Cidadão Kane e Carmem Miranda, que na época já era uma estrela de Hollywood.

Ela tinha migrado aos EUA meses antes da guerra - quando o conflito começou, havia estourado na Broadway com o musical Streets of Paris, cantando Mamãe Eu Quero. Lá, ganhara o apelido de brazilian bombshell. Carmen era a encarnação da política de boa vizinhança: em 1940, se apresentou na Casa Branca e no mesmo ano foi eleita a terceira personalidade mais popular de Nova York.

Carmem Miranda em photoshoot / Crédito: Wikimedia Commons

 

Nas dezenas de filmes dos quais participou em Hollywood, Carmem se tornaria um estereótipo não só do Brasil mas também de toda a América Latina. Já Welles havia sido enviado para cá com a incumbência de gravar um documentário sobre o país - encomenda do Office of Interamerican Affairs.

Welles virou figura folclórica nas noites cariocas: acompanhado de tipos como Grande Otelo, tomava proverbiais bebedeiras de cachaça, colecionava amantes e discorria sobre as origens comuns do jazz e do samba para extasiados convivas em bares e boates.

O Office havia enviado ao Brasil outro personagem ilustre: Walt Disney. O Rio de Janeiro foi a principal parada em uma viagem pela América Latina, no início de 1941 - uma espécie de pesquisa de campo para um filme de propaganda da amizade continental. Disney instalou seu QG no Copacabana Palace e cercou-se de artistas locais para sentir o clima.

Com a ajuda de cartunistas brasileiros como J. Carlos e Luiz Sá, criou o maior sucesso da Disney no Brasil: Zé Carioca. Aliás, não criou: encontrou. Na comitiva brasileira estava o músico José do Patrocínio Oliveira, paulista de Jundiaí. Como membro do Bando da Lua, a banda de Carmem Miranda, viveu nos EUA, onde aprendeu inglês. Foi assim, sendo ele mesmo, que interpretou o papagaio Zé Carioca na animação Alô, Amigos, de 1942. Pois é, Zé Carioca era paulista.

Orson Welles gravando em Fortaleza / Crédito: Domíno Público

 

A missão de Welles não foi tão bem-sucedida: em vez de gravar loas ao governo Vargas - conforme a encomenda -, ele registrou a vida nos cortiços cariocas e de tecelões e pescadores pobres no Nordeste. Os rolos acabaram confiscados. As imagens do documentário ainda existem, mas nunca foram montadas. O filme se chamaria: It's All True (É tudo verdade).

Matérias-primas

Os EUA não queriam a amizade do Brasil apenas por bases e danças exóticas nem pagaram com papagaios: como parte dos acordos com o governo Vargas, os EUA financiaram a construção da Usina Siderúrgica Nacional de Volta Redonda - que custou 200 milhões de dólares da época. Do Brasil, os EUA queriam matérias-primas importantes ao esforço de guerra. A principal era a borracha, usada em tanques, jipes, aviões, uniformes e armamentos.

A indústria da borracha estava praticamente morta no Brasil desde o início do século 20. Nativa da Amazônia, a seringueira foi plantada pelos ingleses em suas colônias do Sudeste Asiático e essas plantações tinham uma produção muito maior que as brasileiras, pois estavam livres de pragas nativas. Mas os japoneses ocuparam a região e bloquearam o acesso às plantações.

ém disso, o Brasil era fonte de materiais que iam desde minérios simples, como ferro e manganês, até diamantes industriais, óleos vegetais e carne em conserva. E era o único produtor disponível de cristais incolores de alta qualidade, o quartzo, utilizados em aparelhos de comunicação, detectores de som e de localização usados contra submarinos e aviões.

A cera de carnaúba, palmeira nativa do Brasil, tem várias aplicações industriais: era usada na produção de vernizes à prova d'água pela indústria bélica. Os bichos da seda, cultivados por pequenos produtores japoneses em São Paulo, eram essenciais na fabricação de paraquedas. E a hortelã-pimenta dava origem ao mentol, que aumentava a potência da nitroglicerina.

Ao decretar guerra aos países do Eixo, Vargas tinha uma dura tarefa de convencimento. Muitos brasileiros admiravam a Alemanha. Havia mais de 200 mil descendentes de alemães no Brasil. "Cresci ouvindo dizer que os alemães eram o povo mais inteligente e avançado da Terra. Já os EUA não tinham grande expressão antes de 1939. Essa admiração pelos americanos só veio depois dos afundamentos dos nossos navios", lembra o veterano da Aeronáutica Osias Machado.

Vida de imigrante

Para a sorte de Vargas, os nazistas fizeram sua parte em cultivar o ódio dos brasileiros. Em agosto de 1942, o irmão mais velho de Osias, Messias, vivendo no Rio de Janeiro, mandou um telegrama avisando que iria ao Nordeste no navio Itagiba. Em 17 de agosto, correu a notícia de que o barco fora afundado no litoral de Sergipe.

Era a quarta vítima de torpedos alemães no mês - represália ao alinhamento do Brasil com os EUA, no início do ano. Até o fim de agosto, mais de 600 brasileiros morreriam. "Achei que meu irmão estivesse no fundo do mar. Aí, pensei: agora é guerra. Quero vingança." Dias depois, veio o alívio: Messias não havia embarcado no Itagiba. Mas a semente estava plantada. "Passei da admiração ao ódio em questão de dias. Juntei um grupo de amigos e saímos quebrando o que fosse de gente do Eixo. Não me arrependo."

A raiva de Osias não era incomum. Em 19 de agosto de 1942, uma multidão saiu às ruas de Porto Alegre. "Formou-se uma grande concentração popular em frente ao Cinema Central, daí irradiando-se por toda a cidade. Os manifestantes saíram correndo pelas ruas, iniciando as depredações que se estenderam até altas horas. Na Sociedade Germania, os manifestantes penetraram no edifício, retiraram os móveis e utensílios para o meio da rua e os incendiaram", noticiou o jornal Correio do Povo.

Getúlio Vargas em 1945 / Crédito: Reprodução

 

Até os comunistas aderiram à mobilização de Vargas. Na época, muitos líderes estavam presos. Ainda assim, os esquerdistas em liberdade se uniram ao regime contra o inimigo comum. "Os membros do PCB que não estavam em cana chegaram a criar um slogan na época: `Quem é jovem vai pra guerra". E a palavra de ordem foi levada a sério", diz o historiador René Gertz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O Estado Novo foi um regime autoritário nacionalista - pelo decreto-lei 406, de 4 de maio de 1938, as escolas em língua estrangeira foram proibidas. No ano seguinte, foi a vez das igrejas - só o latim sobreviveu nos rituais católicos. Quando o Brasil entrou na guerra, também foram proibidas publicações em qualquer língua que não o português.

Para viajar de um estado a outro, descendentes de alemães, italianos e japoneses precisavam de salvo-conduto emitido pela polícia. Não podiam se reunir, nem mesmo em casa. De 1942 a 1945, cerca de 3 mil pessoas foram presas sob acusações de serem "súditos do Eixo" e enviados para 12 campos de prisioneiros, os maiores nas cidades paulistas de Pindamonhangaba e Guaratinguetá.

Racionamento

A falta de itens elementares, como pão branco, gasolina e diesel, tornou-se parte do dia a dia bem antes do rompimento das relações diplomáticas com o Eixo. Em 1939, a escassez de trigo esvaziava os fornos das padarias - o Brasil sempre importou trigo. Em 1942, o governo tentou resolver o problema criando o pão de guerra, feito com farinha de milho. Os preços eram tabelados.

Em São Paulo, o pão branco custava 2,50 cruzeiros. O pão de guerra, 1,60. "Foi um dos momentos em que a mobilização da guerra chegou fundo no cotidiano das pessoas. O pãozinho branco já estava muito instituído entre nós", diz Roney Cytrynowicz, autor da obra Guerra Sem Guerra: a Mobilização e o Cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial.

Nos bares e restaurantes, reclamava-se que o pão de guerra tinha gosto de areia. Mas, se faltava pão, havia macarrão - importado da Argentina. Nascia o pão de macarrão, tão popular que sua receita ainda pode ser encontrada no livro Não É Sopa, de Nina Horta, de 1995.

Petróleo e carros eram outra parte importante do cotidiano. Para contornar a escassez (o país importava cada gota de óleo), em 1940 o governo decretou que todo proprietário de dez automóveis deveria ter, pelo menos, um movido a gasogênio. Em 7 de maio de 1942, começaram os racionamentos. Em julho, carros particulares foram proibidos no Rio. Logo, a maioria dos donos de carro teve de trocar os motores. 

O colapso nos transportes levou à falta de outros itens - os ovos, o açúcar e o sal demoravam para chegar às grandes cidades. Em 1944, começou a faltar até lenha. Não havia peças automotivas, na maioria importadas. Em outubro, em São Paulo, havia mais de 300 ônibus parados por falta de chassis. No auge da escassez, o Correio Paulistano descrevia uma cidade vazia: "Nas grandes vias ermas, os distraídos pedestres atravessam as ruas sem olhar para os lados. As ruas ficaram limpas de automóveis".

A escassez levou à inflação: em São Paulo, o preço dos alimentos aumentou 400% durante os anos de guerra. O açúcar passou a ser racionado: em novembro de 1944, a cota por pessoa era de 750 g a cada 15 dias. Para comprar os gêneros que faltavam, eram usados cartões de racionamento - nos quais os donos de lojas e mercados anotavam a quantia de produto vendido.

Em alguns bairros, para comprar carne, as filas começavam às 4 da manhã e os açougues só abriam duas vezes por semana. O caos nos transportes multiplicava filas na frente dos teatros, dos cinemas e das paradas de bonde - eles não foram tão afetados porque a matriz energética do Brasil era hidroelétrica.

Quem quisesse fugir dos bondes entupidos e com gente pendurada nos balaústres tinha de dividir um táxi com desconhecidos. "Ao fim do dia, os taxistas escreviam com giz o nome dos bairros residenciais no para-brisas e se enfileiravam, enquanto aguardavam os passageiros com destino comum", escreveu o jornalista americano Robert Moore, que visitou o Rio em 1944. "Quem deseja um táxi só para si é obrigado a pagar uma fortuna pela corrida."

Além dos americanos, de racionamentos e da perseguição a estrangeiros, o governo fez mais para trazer a guerra para perto. Em 1942, passaram a ocorrer blecautes nas maiores cidades brasileiras, um exercício de guerra para o caso de ataque aéreo ou naval. Cartilhas foram distribuídas para explicar o procedimento. Às 21 horas, tocavam as sirenes, escureciam os cinemas, apagavam-se a iluminação pública e até os faróis de carros. No Rio, os holofotes do Corcovado ficavam desligados.

Em Salvador, até os tambores dos candomblés cessavam. "Pelas esquinas, rondavam os vigias, atirando pedrinhas nos telhados de casas onde houvesse luzes acessas. Portas e janelas eram acortinadas com pano preto, as frestas tapadas com jornal. Todos esperando o bombardeio", conta o escritor Paulo Carvalho-Neto em Morrer pelo Brasil.

Em Natal, o Dia da Vitória, 8 de maio de 1945, foi um fiasco. Multidões comemoravam na Times Square de Nova York, na praça Vermelha de Moscou e na avenida Rio Branco, no Rio. Ali ninguém saiu às ruas. O Teatro Carlos Gomes, onde seria celebrado o evento, estava deserto. Os organizadores foram às ruas para catar mendigos e prostitutas para ocupar os 600 lugares vazios. O discurso da vitória foi feito para uma plateia sonolenta, totalmente desinteressada. O for all, ou forrobodó, havia acabado.

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