'Ecce Homo', de Luca Giordano - Getty Images
Jesus Cristo

Das cruzadas ao incêndio de Notre-Dame: A história da 'coroa de espinhos de Jesus'

Considerada uma relíquia, a suposta coroa de espinhos utilizada por Jesus é uma das mais importantes relíquias cristãs que existem

Éric Moreira Publicado em 08/06/2024, às 10h00

Uma das figuras mais debatidas da História, a santidade de Jesus Cristo não é questionada pelos cristãos fervorosos. E muito disso se deve, inclusive, às consideradas "relíquias sagradas", objetos conhecidos relacionadas à trajetória da figura messiânica, que hoje são vistos como tesouros.

Entre essas relíquias, os mais famosos são o Santo Graal — o cálice em que ele bebeu vinho em sua última refeição com os apóstolos —, os supostos pregos que crucificaram Jesus, que estão em diferentes lugares do mundo, e o que seriam pedaços da verdadeira cruz da crucificação.

Porém, um tesouro em específico, também muito mencionado na liturgia cristã, e que também está sob proteção hoje, é a famosa coroa de espinhos. Ela, inclusive, teve uma trajetória bastante longa e complexa até chegar onde chegou.

Ecce Homo

Um tema bastante representado por artistas ao longo da história é o "Ecce Homo" ("Eis o Homem"), termo em latim que Pôncio Pilatos disse antes da morte de Jesus. Nessa cena, ele estaria flagelado, atado e já utilizando sua coroa de espinhos, enquanto hostilizado como o messias rejeitado.

'Ecce Homo', de Quentin Matsys / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

 

Uma curiosidade é que nas representações mais antigas da crucificação, Cristo não é visto utilizando uma coroa de espinhos. Além disso, não existem registros de culto às relíquias até o século 5, quando São Paulino instruiu os fiéis a venerar também as relíquias, incluindo a coroa de espinhos, na basílica do Monte Sião, em Jerusalém.

No The Conversation, Emily Guerry, professora sênior de História Medieval na Universidade de Kent, explica que, em 591 d.C., Gregório de Tours desenvolveu o que é considerada a descrição mais antiga da coroa de espinhos: "Dizem que a Coroa de Espinhos parece estar viva. Todos os dias suas folhas parecem murchar e todos os dias ficam verdes novamente por causa do poder divino".

Viagens

Existem poucos relatos de que o item sagrado estivesse no Monte Sião após o cerco de Jerusalém, em 636 d.C., diante das dificuldades de acesso dos peregrinos na região. Porém, há uma testemunha material da localização da relíquia em Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente (ou Império Bizantino): um relicário da 'Verdadeira Cruz', conhecida como Limburg Staurotheke.

Limburg Staurotheke / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

 

Fabricado por volta de 950 d.C., o relicário possui uma inscrição que afirma conter itens do tesouro do imperador bizantino, incluindo um fragmento da coroa de espinhos. Porém, quando teria chegado em Constantinopla, até hoje é uma informação incerta.

O guardião do palácio de Bucoleon — onde a relíquia foi consagrada —, Nicolau Mesarita, enquanto escrevia sobre um golpe político de 1200, elogiou a sobrevivência da coroa de espinhos, também descrevendo-a como "fresca, verde e não murcha". Depois da Quarta Cruzada (entre 1202 e 1204), porém, o palácio e a relíquia passaram a pertencer a Balduíno I, o primeiro imperador latino de Constantinopla, que tomou a região.

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Antiga representação de Balduíno I falando com soldados / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

 

Então, em 1228, depois que Balduíno II assumiu o trono, com apenas 11 anos, uma grande crise tomou conta de Constantinopla, que começou a prometer relíquias como garantia de dívida em dinheiro. Nesse contexto, por volta de 1237, a coroa de espinhos teria servido para garantir um empréstimo de um rico comerciante veneziano, Niccolo Quirino.

Presente

Eventualmente, Balduíno decidiu partir rumo à Europa para tentar angariar fundos e quitar suas dívidas, e acabou abordando o rei Luís IX da França, pedindo mais ajuda. E surpreendentemente, o monarca francês concordou em pagar a dívida imperial.

Em respeito às regras ecumênicas, a coroa de espinhos não poderia ser vendida a Luís IX. Ainda assim, em troca do pagamento da dívida dos bizantinos, a relíquia cristã foi transferida para Paris, em uma transação diplomática e celebrada como um presente divino.

Luís IX recebendo a coroa de espinhos de Balduíno II / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

 

Segundo um relato do arcebispo Gauthier le Cornu, de Sens, a transferência da coroa para Paris envolveu uma série de cerimônias. Na ocasião, explica o documentário "Mistérios da Fé", lançado pela Netflix, o próprio rei Luís IX apresentou-se sem sua coroa tradicional e vestia uma túnica humilde.

Ele caminhou descalço por Paris carregando a relíquia, em uma procissão realizada em 19 de agosto de 1239, que terminava com um sermão na catedral de Notre-Dame, antes de ser levada ao palácio real.

Vale mencionar que Luís IX morreu em 25 de agosto de 1270 e, em 1297, 27 anos após sua morte, foi canonizado como santo. Em 1248, a Sainte-Chapelle, uma capela gótica, em Paris, foi consagrada em homenagem à Paixão de Cristo, envolvendo a coroa de espinhos na cerimônia.

Foi nesse momento que, pela primeira vez, numerosas imagens de Jesus crucificado e utilizando a coroa surgiram, sendo assim uma reinvenção da iconografia cristã.

A relíquia da coroa de espinhos / Crédito: Foto por Gavigan pelo Wikimedia Commons
Fotografia exterior da Sainte-Chapelle / Crédito: Getty Images
Interior da Sainte-Chapelle / Crédito: Getty Images
Interior da Sainte-Chapelle / Crédito: Getty Images

 

Notre-Dame

Por muito tempo, pensou-se que a Sainte-Chapelle seria o recinto final da coroa de espinhos, no entanto, a Revolução Francesa mudou o cenário. Em 1790, algumas relíquias foram entregues na Basílica de Saint-Denis e, em 1808, a relíquia foi transferida para Notre-Dame, onde poderia finalmente ser adorada por todos os parisienses como um tesouro cívico partilhado.

E foi na Catedral de Notre-Dame que a relíquia permaneceu, suportando inclusive duas guerras mundiais, até a terrível calamidade de 15 de abril de 2019, quando o local sofreu com um grande incêndio. Durante a fase inicial da reconstrução de Notre-Dame, o item ficou no Hotel de Ville, e agora, enquanto as obras continuam, está sob a guarda do Museu do Louvre.

Catedral de Notre-Dame antes do incêndio / Crédito: Foto por Antonin Subtil pelo Wikimedia Commons

 

Enfrentando milênios de guerras, desastres e todo o tipo de ameaças, o pequeno e sagrado objeto, de fato, chama atenção por seu simbolismo e sua durabilidade. No entanto, as relíquias são debatidas por pesquisadores.

Debate

Um exemplo que chama atenção é a Santa Cruz, mencionada no começo do texto. Hoje, diferentes fragmentos podem ser encontrados ao redor do mundo. 

Candida Moss, que engloba o Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Birmingham, Inglaterra, explicou à BBC que a história da Santa Cruz (Verdadeira Cruz) se baseia em registros feitos por historiadores do passado, contudo, a autenticidade da cruz em venerada não fora confirmada por eles.

"Provavelmente esse pedaço de madeira não é a cruz em que Jesus foi crucificado", explicou ela, "porque muitas coisas poderiam ter acontecido com ela. Por exemplo, que os romanos a reutilizaram para outra crucificação, em outro lugar e com outras pessoas".

Outro nome que debate a história da relíquia é Joe Kickell. Como pesquisador, ele fez parte do Comitê para a Investigação Cética, em Nova York. Assim, participou de um estudo cujo objetivo era entender a origem da cruz. Em artigo, ele escreveu que não existem evidências capazes de comprovar a autenticidade do item.

"Não há uma única evidência que sustenta que a cruz encontrada por Helena em Jerusalém, ou por qualquer outra pessoa, seja a verdadeira cruz em que Jesus morreu. A história da proveniência é ridícula. E seu caráter milagroso, também", publicou Kickell em artigo. 

Mark Goodacre, historiador, explica que as relíquias, na verdade, são mais um desejo do que autenticidade. "(Isso se deve ao) desejo de ter uma proximidade física com algo que acreditamos", afirmou ele à BBC. 

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