Muito antes das cantadas, as regras de etiqueta dos séculos 17 ao 19 traçavam bons modos bastante curiosos para o galanteio
Mary del Priore Publicado em 16/05/2021, às 11h00
Na Idade Moderna, erotismo designava “o que tivesse relação com o amor”. Como essa definição se materializaria na prática? Há registros de estratégias de sedução que soariam pouco familiares e mesmo pueris aos olhos de hoje.
É o caso do chamado “namoro de bufarinheiro”, descrito por Júlio Dantas, uma prática bastante comum Portugal e talvez no Brasil, ao menos nas grandes cidades. Em resumo, consistia em passarem os homens a distribuir piscadelas e a fazerem gestos sutis com as mãos e bocas para as mulheres que se postavam à janela, em dias de procissão, como se fossem eles bufarinheiros a anunciar seus produtos.
É também o caso do “namoro de escarrinho”, costume lusobrasileiro dos séculos 17 e 18, no qual o enamorado punha-se embaixo da janela da moça e não dizia nada, limitando-se a fungar à maneira de gente resfriada. Caso a declaração fosse correspondida, seguia-se uma cadeia de tosses, assoar de narizes e cuspidelas.
Escapa-nos, sobremaneira, o apelo sedutor que os tais “escarrinhos” poderiam ter naquele tempo, mas sabe-se que, até hoje, no interior do país, o namoro à janela das moças não desapareceu de todo. É difícil, de certa forma, desfazer-se dos costumes.
Documentos remanescentes das visitas da Inquisição, preocupadas com as moralidades de nossos ancestrais, revelam, por exemplo, a existência de “palavras de requebros e amores” e a “beijos e abraços”, sugerindo prelúdios eróticos e carícias entre amantes.
Atos sexuais incluíam toques e afagos, implicando na erotização das mãos e da boca. “Chupar a língua”, “enfiar a língua na boca”, segundo os mesmos documentos, não era incomum. Os processos revelam que alguns sedutores iam direto ao ponto: “pegar nos peitos” e “apalpar as partes pudentes” era queixa constante de mulheres seduzidas.
Processos de sodomia masculina revelam, por exemplo, amantes que “andavam ombro a ombro”, abraçavam-se, trocavam presentes e penteavam-se os cabelos mutuamente à vista de vizinhos, desafiando a Inquisição, sua grande inimiga.
Arroubos não foram incomuns; beijos roubados e furtivas bolinações eram práticas usuais regadas a propostas lascivas e palavras amatórias. Alguns toques podiam ser tímidos, escondendo confessados desejos. Rostos e mãos levemente roçados por dedos ávidos ou mãos apertando outras.
Fazer cócegas na palma da mão e pôr a mão sobre o coração para dizer o querer bem era parte da gramática amorosa. Em algumas ocasiões, eram os pés que agiam ligeiros a alisarem outros pés. Alguns afagos eram apenas esboçados, anunciando a vontade de outros mais ousados, enquanto se elogiava a formosura da mulher.
Enquanto literatos como Gregório de Matos davam vazão aos sentimentos eróticos, a catequese se impunha a toda a sociedade colonial. Para os religiosos da época, a agenda era urgente e se resumia em uma só: civilizar, educando nos princípios cristãos.
No casamento todo o cuidado era pouco. Normas regiam as práticas dos casados. Até para ter relações sexuais, as pessoas não se despiam. As mulheres levantavam as saias ou as camisas e os homens abaixavam as calças e ceroulas. Mesmo nos processos de sedução e defloramento que guardam nossos arquivos vê-se que os amantes não tiravam a roupa durante o ato.
Um exemplo, em Parati, Rio de Janeiro, no início do século 19: “E que ele testemunha presenciara e vira a ofendida e o réu estarem no mato juntos e unidos um por cima do outro a fazerem movimento com o corpo, e que ele testemunha vendo este ato, voltou sem dar a perceber a ninguém”.
Nem uma palavra sobre despir-se. As práticas amorosas, contudo, eram rigidamente controladas. Toda atividade sexual extraconjugal e com outro fim que não a procriação era condenada. Manobras contraceptivas ou abortivas não eram admitidas.
A noção de debitum conjugale, uma dívida ou dever que os esposos tinham que pagar, quando sexualmente requisitados, torna-se lei. Associava-se o prazer exclusivamente à ejaculação, e por isso era “permitido” aos maridos prolongarem o coito com carícias, recorrendo até a masturbação da parceira, a fim de que ela “emitisse a semente”, justificando a finalidade do ato sexual.
Ao ser definido como uma conduta racional e regulada em oposição à paixão dos amantes, o comércio conjugal só era permitido em tempos locais oportunos. Consideravam-se impróprios os dias de jejum e festas religiosas, o tempo da menstruação, a quarentena após o parto, os períodos de gravidez e amamentação.
Sobre o papel da mulher durante o coito, fazia-se eco aos conselhos de Aristóteles: que nenhuma mulher desejasse o lugar de amante de seu marido. Isso queria dizer que a esposa não devia demonstrar nenhum conhecimento sobre sexo. Somente casta e pura ela seria desejada. Sua ingenuidade seria prova de sua honradez.
Mary del Priore é doutora em história social com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, vencedora do Prêmio Jabuti e autora de Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil.
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