Na coleção do Museu de Arte Contemporânea da USP, a "Série Trágica", de Flávio de Carvalho, representa a agonia e morte de sua mãe
Valdo Resende* Publicado em 31/08/2024, às 08h00
Há artistas cuja obra está destinada a levantar questionamentos, provocar nossos mais íntimos pensamentos e, sobretudo, uma inquieta admiração. Trabalhos que nos levam a pensar sempre sobre os objetivos da arte, a refletir sobre a vida, nos estimulando desejos de revisitar o que nos legaram. Um desses artistas é Flávio de Carvalho.
Sendo citado, Flávio de Carvalho é sempre lembrado por alguns como “aquele cara que andou pelo Viaduto do Chá de saia” (1956); poucos sabem do sujeito que publicou o anúncio “compra-se uma metralhadora” (1924) ou do mesmo indivíduo caminhando na “contramão” de uma procissão de Corpus Christi (1931). Estudiosos, fruidores e colecionadores de arte reverenciam toda a obra do artista, colocando em evidência os retratos, os desenhos e a Série Trágica - Minha Mãe Morrendo (1947). De sua vida afetiva, causa inveja um namoro com nada mais, nada menos que Cacilda Becker, uma das grandes divas do teatro nacional.
Filho de grandes proprietários de fazendas de café, Flávio de Rezende Carvalho nasceu em Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro, em 1899. Teve o mesmo destino dos ricos de então, indo estudar na França (1911-1914) e, depois, na Inglaterra (1914-1922). As datas da permanência no exterior importam, por exemplo, para notarmos que essa ocorreu durante eventos que resultaram na I Grande Guerra. O conflito mundial não impediu que Flávio de Carvalho se tornasse engenheiro e estudasse arte. Voltaria para o Brasil no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, ocorrida em São Paulo, tornando-se amigo e um dos notáveis entre os modernistas brasileiros.
De volta da Europa, o jovem engenheiro começou a trabalhar com Ramos de Azevedo, o arquiteto do Theatro Municipal de São Paulo, do Mercado Municipal, da Pinacoteca do Estado e, entre outras, da Casa das Rosas. No escritório, Flávio de Carvalho gostava de trabalhar usando shorts e não escapou dos vizinhos bisbilhoteiros de plantão.
Incomodados com as pernas do jovem, fizeram abaixo-assinado com a intenção de expulsá-lo do prédio. A resposta foi digna do espírito dadaísta do “me deixem em paz e não me encham” que caracterizou artistas desse movimento do início do século XX. Ele respondeu que não mudaria o vestuário e compraria uma metralhadora para responder aos observadores vizinhos. E publicou no jornal Diário Popular um “compra-se uma metralhadora. Tratar com Flávio de Carvalho” que ficou na história.
Múltiplo, o arquiteto e engenheiro Flávio de Carvalho criou cenários, escreveu livros e peças de teatro envolvendo-se no Movimento Modernista, realizando entre suas atividades algumas performances, denominadas por ele “experiências”. Buscava nessas ações a proximidade com o público, atuando e tentando captar as reações perante suas ações, além de refletir sobre suas próprias sensações. A “Experiência nº 2”, em 1931, ocorreu durante uma procissão de Corpus Christi pelos centros da capital paulista. Ele entrou no cortejo percorrendo-o na contramão, a cabeça coberta com um boné, em franco desrespeito ao evento. A reação dos fiéis foi de um incômodo inicial ao ódio, seguido de desejo de linchamento e perseguição. O artista também deixou registrado as próprias reações. Da corajosa “invasão” ao pânico final, quando ele teria se escondido em um estabelecimento comercial da Rua São Bento.
Dentro da obra de Flávio de Carvalho está a perturbadora “Série Trágica”, nove desenhos a carvão que retratam os últimos momentos de sua mãe, D. Ophélia Crissiúma de Carvalho. Foi em abril de 1947. Vítima de câncer, a mulher entrou em agonia e chamaram de volta à capital o filho que estava em Valinhos, no interior de São Paulo. Conta o pesquisador Rui Moreira Leite que, ao lado da cama da genitora, Flávio fez esboços rápidos, registros para posterior trabalho final.
A primeira composição mostra a mulher envolvendo a cabeça com os próprios braços. Feito de linhas rápidas, múltiplas, construindo forma, volume, realçando luz e sombra. Nos dá impressão precisa do rosto da mulher que, nos desenhos seguintes, sugerem vertigem, desfalecimento. Revelam a ação interna de todo ser humano que luta pela sobrevivência, alternando calma e tensão, reação e entrega. Flávio de Carvalho não desenha a morte, mas nos faz a aproximação desta sobre o rosto – sempre o rosto – da mulher que está morrendo.
“Minha Mãe Morrendo” lembra minha própria mãe, minha própria morte. Assis Chateaubriand, por essa série, chamou-o de “o pintor maldito”. Outros o tacharam de louco, esquizofrênico. Concretamente, o artista retrata a passagem de um estado a outro em trabalho expressionista profundo, contundente, de beleza rara e incômoda. A questão é inevitável: Por qual razão Flávio de Carvalho retratou os últimos momentos de sua mãe? “Eu não desejava esquecer o seu grande sofrimento”, confidenciou ao parente, Custódio Ribeiro de Carvalho Jr. As obras pertencem ao acervo do Museu de Arte Contemporânea - MAC.
A Série Trágica – Minha mãe morrendo não é expressão isolada do pintor que, em vários retratos, buscou muito mais que a mera representação do que via. É possível compreender a profundidade das personalidades de indivíduos como Mário de Andrade, Jorge Amado e José Lins do Rego, por exemplo. Em outro conjunto estão as mulheres nuas, sensuais, entre os temas preferidos. Obras que escandalizaram o público e levaram-no a ter exposição fechada pela polícia (1934) por atentado ao pudor.
À frente de seu tempo, Flávio de Carvalho foi provavelmente o mais celebrado praticante de “crossdresser” do Brasil do século XX. Vivendo em país tropical, adepto da Antropofagia Modernista, ele causou o maior alvoroço ao apresentar a Experiência nº 3, o "New Look: Moda verão para o novo homem dos trópicos". Dessa vez, para evitar a possível violência de receptores, preparou o ambiente com matérias de revistas e jornais anunciando e antecipando discussão sobre o que estava por vir.
Em 18 de outubro de 1956, Flávio de Carvalho ganhou as ruas com uma saia curta, blusão, sandálias e meia arrastão (ótimas para esconder varizes!). A repercussão foi imensa e, ainda hoje, causa estranheza mesmo com as variações e os novos hábitos de vestuário. Com o aquecimento aumentando e visando o próximo verão, vale lembrar o poeta Manuel Bandeira que, sobre o New look, escreveu: “Na verdade, se tivéssemos juízo e coragem, adotaríamos o traje inventado por Flávio de Carvalho. Como não temos, chamamo-lo de louco e vaiamo-lo” (1956).
Intensa, a vida de Flávio de Carvalho merece estudos para além do mais evidente. É dele, por exemplo, “O bailado do Deus morto” peça de teatro censurada em 1933, recentemente revisitada pelo Teatro Oficina com direção de Marcelo Drummond. Também dele a série de entrevistas com artistas europeus: Man Ray, Marinetti, André Breton e outros. Há ainda o arquiteto da Fazenda Capuava e do conjunto da Alameda Lorena e o artista que participou de diversas Bienais de São Paulo. Entre tantas atividades e muitos amores, Flávio de Carvalho faleceu em 1973, após sofrer um derrame cerebral.
*Valdo Resende é Mestre em Artes Visuais e escritor.
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