Há 101 anos, na 1ª Guerra, aconteceu a última carga de cavalaria bem-sucedida. Era o fim de uma forma de combate que resistira à decadência por séculos
Fabiano Onça Publicado em 31/10/2018, às 15h00 - Atualizado em 18/02/2019, às 15h02
Se houve um setor que não ficou estagnado durante a Idade Média na Europa foi o militar. No início da era feudal, entre 700 e 1000, a tradição, herdada dos povos bárbaros que conquistaram o Império Romano, era bem simples.
Todos os homens adultos tinham de pegar suas próprias armas e servir seu senhor quando chamados. Isso fazia dos exércitos nada muito melhor do que uma milícia mal treinada - exceto pelo punhado de guerreiros profissionais que eram mantidos pelos suseranos para manter a ordem.
Mas as invasões dos vikings, húngaros e árabes nos séculos 7, 8 e 9 trouxeram um novo problema. Eram povos devotados à pilhagem, surgindo e se retirando de surpresa. Apenas forças de razoável mobilidade e um mínimo de treinamento teriam condição de enfrentá-los. Isso exigia cavalos.
Foi apoiado nesse preceito – e na introdução do estribo, por volta do século 8 – que Carlos Magno, rei dos francos, investiu na ampliação da sua cavalaria. O problema é que forças montadas eram difíceis de serem mantidas. Animais eram caros. E cavaleiros que soubessem combater a cavalo precisavam de treinamento intensivo, ou seja, não poderiam fazer outra coisa da vida.
Por volta do ano 1000, na França, um cavaleiro, em trajes completos, incluindo armadura, armas, cavalo, equipamento para um escudeiro, um pajem e eventualmente outros dois auxiliares, teria de desembolsar cerca de 180 mil ducados, fora outros 15 mil apenas para manter sua equipe durante um ano. Naquele tempo, uma renda anual de 2.500 ducados era considerada ótima.
"Estava preparado o terreno para a existência de uma sociedade feudal, em que os membros da classe dominante, sustentados pela riqueza de suas terras, mantinham-se preparados para atuar como cavaleiros quando fossem convocadoss", diz o professor Michael Allen, da História Medieval da Universidade de Chicago.
A despeito do alto custo, a criação de uma casta de cavaleiros foi um sucesso em termos militares. Uma carga de cavalaria, galopando com as lanças apontadas para os inimigos, era uma arma fatal. Para se esquivar de um ataque de cavalaria, só fugindo e se escondendo. De preferência, em castelos e fortificações, que desde a época da queda de Roma vinham alimentando uma longa tradição de abrigar as populações locais dos invasores.
Entre os anos 1000 e 1300, uma infinidade de fortalezas surgiu pela Europa. No século 14, na região da floresta de Fontainebleau, na França, haviam sido construídos 12 fortes, 5 torres, 4 mansões com proteção, 28 igrejas fortificadas e 6 castelos - ou seja, uma fortificação a cada 19 km quadrados.
A hegemonia dos cavaleiros durou até o século 13. A despeito de invenções do Oriente, como a besta (cujo dardo conseguia perfurar armaduras), terem roubado a invulnerabilidade da cavalaria, esta permaneceu como o principal instrumento no campo de batalha medieval. Isso até o surgimento de novas armas e táticas.
Uma delas era o pique, feito de tronco de madeira, de três metros de comprimento, afiado na ponta e apoiado no chão. “Estes troncos, mantidos a 45 graus por soldados, conseguiam a proeza de frear as mais potentes cargas de cavalaria”, fala o professor Allen. Utilizado pelos suíços, esta arma defensiva, manejada por plebeus, derrotou seguidamente os cavaleiros dos Habsburgos (casa real da Áustria).
Na Inglaterra, sob o patrocínio do rei Eduardo I, membros das classes subalternas eram duramente treinados numa nova e mortífera arma: o arco longo, originário do País de Gales (recém-conquistado pela Inglaterra). A novidade exigia muita dedicação - mas valia a pena: disparava flechas com tal potência que até as placas e cotas de malha dos cavaleiros eram perfuradas. Mais que isso, a velocidade e a distância de seus projéteis tornavam o arco longo incomparável no campo de batalha.
Esta supremacia foi sentida principalmente na Guerra dos Cem Anos, em confrontos como os de Crecy (1346) e Agincourt (1415). Enquanto os franceses ainda utilizavam o combate a cavalo, com soldados fortemente blindados impondo sua força, os ingleses adotaram uma tática defensiva. Seus arqueiros trabalhavam a uma distância confortável do inimigo. "O resultado das duas batalhas, basicamente massacres ingleses sobre os exércitos franceses, não deixa dúvidas sobre qual sistema prevaleceu no período”, diz o professor de história Wilson Barbosa, da USP.
A resposta francesa a esta ameaça, entretanto, não foi dada no campo de batalha, mas fora dele. Percebendo que, no combate direto, os ingleses e seus arcos eram imbatíveis, o condestável da França, Bernard du Guesclin (1315 – 1380), elaborou uma estratégia de ação indireta. Ao invés de oferecer combate, ele promoveu uma guerra de atrito. Consistia em criar emboscadas, ações de guerrilha, ataques noturnos, marchas e contra-marchas, recuos estratégicos. Tudo para que os ingleses não tivessem a chance de utilizar sua arma predileta.
A estratégia teve sucesso e Bernard du Guesclin conseguiu o que parecia ser impossível. Entre 1370 e 1380, ano de sua morte, o condestável e seus exércitos expulsaram os ingleses de quase todo o território francês. Ironicamente, os principais desafetos dele estavam entre suas próprias fileiras. Muitos nobres franceses, ainda atrelados ao código medieval de cavalaria, classificavam a postura de Guesclin como covarde e indigna.
O período imediatamente posterior à morte do condestável (por disenteria durante uma campanha) é marcado pela ascensão de outro poderoso meio de guerra: o canhão. “Naquela época, o canhão era pesadíssimo e não tinha mobilidade alguma. Sua pontaria era deficiente e sua cadência de tiros não ultrapassava algumas balas por dia. Basicamente, era uma ferramenta de sítio, feita para destruir muralhas”, conta o professor Wilson. Uma das primeiras batalhas em que apareceu foi em Castagnaro (1387). Em Agincourt (1415), os franceses possuíam artilharia de cerco, mas ela não foi utilizada durante o combate.
Uma das primeiras participações efetivas dos canhões ocorreria em outro momento decisivo da Guerra dos Cem Anos: o cerco inglês à cidade de Órleans (1428 – 1429). Os franceses, bem defendidos, haviam reunido 70 canhões dentro da cidade. O suficiente para resistir até a chegada de Joana D´Arc, com suas tropas, e poder enfim libertar a cidade do sítio.
Dali em diante, o papel dos canhões só cresceu. Carlos VII (1403 – 1461), o soberano que conduziu a França nas fases finais do conflito dos Cem Anos, foi um grande incentivador da artilharia. Gastou grandes somas para modernizar e inserir a nova arma no corpo do exército. Os canhões, antes peças fixas, passaram a ser montados em cima de carruagens, enquanto as peças e projéteis foram uniformizados. Balas de pedra acabaram substituídas por balas de ferro, para provocar ainda mais impacto e estragos no exército inimigo.
Mesmo a pólvora utilizada pela artilharia começou a ser misturada em proporções fixas de salitre, enxofre e carvão. O resultado foi devastador no campo de batalha. Quando as hostilidades recomeçaram entre os dois países, os arqueiros e soldados ingleses ficaram acossados.
“A superioridade francesa nas armas de fogo, junto com o florescimento de um sentimento nacionalista de defesa da pátria, foram fundamentais na expulsão dos ingleses da França”, afirma a o professor Allen. Os tempos definitivamente haviam mudado na Europa. Muitas dessas transformações ocorreram, em boa parte, por causa da evolução do armamento e das táticas militares.
A cavalaria não morreira. Ela continuaria a ser usada, apenas não mais como força de choque frontal e decisiva. No lugar disso, cavaleiros passaram a atirar eles próprios, atacar alvos mais fáceis, como artilharia, ou fazer manobras de flanco, quando os adversários já estavam engajados com o inimigo. Assim, ela continuou a ter um papel significativo durante as Guerras Napoleônicas, era uma das primeiras escolhas para atacar as tropas inimigas.
A Primeira Guerra foi o choque da mentalidade napoleônica com a tecnologia moderna. Rapidamente ficou claro que não havia mais espaço para cavalaria diante das metralhadoras – se avançar contra elas a pé era suicídio, tanto pior de cavalo, que aumenta o tamanho do alvo. Ainda assim em um lugar onde a guerra foi menos imóvel, ela teve sua última chance. Em 31 de outubro de 1917, na Batalha de Bersebá, Síria, aconteteceu a última carga de cavalaria bem-sucedida. Forças de cavalaria leve (isto é, a que atira, não usa lanças) britânicas avançaram com suas baionetas contra a infantaria do Império Otomano, invadindo suas trincheiras antes que pudessem reagir com suas metralhadoras. Ninguém esperava mais isso àquela altura. Eles acabaram vencidos.
Medieval Warfare: A History – Maurice Hugh Keen, (1999).
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