Antiga representação de uma beguina - Foto por Matthäus Brandis pelo Wikimedia Commons
Idade Média

Beguines: As mulheres que viviam sem homens no passado

As beguinas surgiram como alternativa durante um período em que as mulheres da Europa só se tornavam freiras ou esposas presas em casa; entenda!

Éric Moreira Publicado em 02/04/2023, às 08h00 - Atualizado em 18/05/2023, às 18h05

Era dia 1º de junho de 1310 quando, na Place de Grève em Paris, na França, Marguerite Porete se tornou mais uma vítima da Inquisição da Idade Média, sendo queimada viva. Essa punição, geralmente aplicada a mulheres relacionadas à "bruxaria", lhe foi aplicada devido a produção de uma obra considerada mística: 'Miroir des Simples Âmes' (ou 'O espelho das almas simples', em tradução livre), onde narra um diálogo entre o Amor, a Razão e a Alma, sendo essa obra escrita por volta de 1300.

Mas, a obra de Porete tinha, também, algumas divergências com relação ao que era mais comum de se encontrar na região, na época. Escrita na língua nativa da autora — o picardo, da região do norte da França — em vez do latim, conforme as normas eclesiásticas, ela era "um livro itinerário espiritual" que, lido em voz alta em diferentes locais, se tornou considerado perigosamente popular.

Isso porque as antigas autoridades religiosas consideravam-no uma ameaça ao poder do clérigo, pois espalhava, principalmente, a mensagem de que o amor a Deus poderia ser expresso de outras formas, sem a necessidade de uma instituição religiosa como mediadora. Com isso, não só o clero seria mais deixado de lado, como também o poder do rei Felipe 4° da França, que ainda tentava se estabelecer como defensor do catolicismo.

Com isso, se torna mais fácil entender porque 'O Espelho das Almas Simples' passou a ser considerado uma obra herege na França, anos antes da condenação à morte de Porete. E o conflito se tornou tenso a ponto de até mesmo o bispo, publicamente, queimar uma cópia da obra em Paris. 

Então, pensando que talvez toda aquela confusão entre ela e a maior instituição da época passaria com o tempo, ao fim de 1308 Porete tomou a decisão de ler seu tratado em público. No entanto, seu destino foi pior que o esperado: ela foi presa, entregue ao tribunal da Inquisição, e interrogada por um ano e meio enquanto trechos de sua obra eram avaliados por teólogos. E já sabemos o que viera a acontecer com ela.

Segundo relato do cronista dessa época, Guilherme de Nangis, que narrou a execução, conforme informado pela BBC, Porete demonstrou alguns sinais de penitência, mas não foi o suficiente para salvá-la. Posteriormente, seu caso fez com que ela fosse canonizada no Concílio de Viena, sendo ela considerada uma das figuras mais importantes do movimento que viria a ser conhecido como das 'beguinas'.

Ilustração de uma beguina no livro 'Des dodes dantz' (1489) / Crédito: Foto por Matthäus Brandis pelo Wikimedia Commons

 

As beguinas

Antes de se compreender o que era o chamado movimento das beguinas, é importante pensar no contexto em que surgiu: durante a Idade Média, as mulheres cristãs europeias não tinham muitas opções do que fazer em vida. Ou se 'casavam' com Deus, tornando-se freiras que deviam seguir votos de obediência, castidade e pobreza, ou casavam-se com homens comuns, se tornando então destinadas a viver semiconfinadas em seus lares, cuidando da casa e dos filhos, com votos de obediência e fidelidade.

Dessa forma, aquelas mulheres que por alguma razão não quisessem se casar e nem encontrassem um marido — pois, além de a idade média de morte ser mais baixa que hoje em dia devido doenças, havia também alta taxa de mortalidade por conta das Cruzadas — se encontraram e reuniram nesse movimento de florescimento espiritual, sendo assim possibilitadas de usufruir de alguma independência.

Logo, durante o século 12, o estilo de vida semirreligioso se tornou uma terceira opção de rumo de vida para as mulheres da região do Flandres — onde hoje existe a França, a Bélgica e a Holanda —, de forma que, sem pertencer a qualquer ordem religiosa oficial, tinham liberdade para criar suas próprias regras. E dessa forma, até mesmo algumas comunidades de beguinas surgiram, embora outras desejassem viver como itinerantes solitárias, consolidando o movimento.

Assim, como não havia uma administração centralizada que regulava e oficializada as beguinas, não se sabe ao certo quantas mulheres se adequaram ao movimento. No entanto, uma antiga carta do papa João 22 ao bispo de Estrasburgo, na França, indicava haverem, pelo menos, 200 mil beguinas no oeste da Alemanha, em 1321.

Também se calcula que cerca de 50 anos depois, em Bruxelas, na Bélgica, existiam outras 1,3 mil, equivalente a mais de 4% dos habitantes totais do país na época. Ao todo, estima-se que o movimento contou com um milhão de mulheres por toda a Europa, em seu auge.

Recorte do quadro 'Beguina de Ghent' / Crédito: Foto por Ghent University pelo Wikimedia Commons

 

Voltando a explicar como o movimento se dava, as beguinas eram consideradas mulheres muito piedosas, frequentemente localizadas em centros urbanos, nos chamados beguinários, atendendo pobres e enfermos em hospitais ou em suas próprias enfermarias, com uma vida de grande devoção religiosa, mas sem qualquer obrigatoriedade de votos permanentes. Por exemplo, mesmo que a castidade fosse valorizada, elas tinham liberdade de casar-se.

Além disso, se sustentavam majoritariamente graças à promissora indústria têxtil da época, lavando lã bruta ou lençóis, ou até mesmo confeccionando tecidos; outras, trabalhavam em residências, granjas e até jardins. Assim, entravam de acordo com o que desejassem e precisassem nas cidades, retornando aos beguinários ao anoitecer — um nível impressionante de independência, considerando-se as opções da Idade Média.

Beguinas e a Igreja

Inicialmente referidas como "mulieres sanctae" ou "mulieres religiosae" — "mulheres santas" e "mulheres religiosas", respectivamente, em latim —, não se sabe exatamente quando essas pessoas começaram a ser chamadas de beguinas, e nem a origem do termo.

Contando com o apreço de beneficiários de suas obras, sendo também um movimento crescente e muito atrativo, claro que elas não passariam despercebidas, não só chamando atenção (negativamente) da Igreja, como também de algumas personalidades.

"Embora essas mulheres, que sabemos que são muito numerosas na diocese de Liège [Bélgica], vivam entre as pessoas, elas superam muitos enclausurados em seu amor a Deus", afirma em antigos escritos o abade e escritor alemão Cesário de Heisterbach. "Elas vivem a vida eremítica entre as multidões, o espiritual entre o mundano e o virginal entre os que procuram o prazer. Quanto maior é a sua batalha, maior é a sua graça e maior a coroa que as espera."

Além dele, o francês Jacques de Vitry — pregador, historiador e líder da igreja católica — também trabalhou para que essas mulheres fossem reconhecidas pelas autoridades religiosas.

A decisão se deve também porque construiu uma profunda relação com Maria d’Oignies, uma mulher que renunciou a fortuna de sua família para adotas o estilo de vida, inspirando também de Vitry a escrever 'Vita Marie de Oegnies' ('Vida de Marie de Oegnies', traduzindo ao pé da letra), o primeiro relato desse novo modelo de espiritualidade feminina.

Pintura 'As beguinas de Goes' / Crédito: Domínio Público via Wikimedia Commons

 

No entanto, o movimento das beguinas também chamaria atenção negativamente, desagradando muitas pessoas. Embora as tenham inspirado também o surgimento de um movimento masculino semelhante, dos begardos, os homens medievais não gostavam da liberdade que as mulheres adeptas tinham; além disso, a castidade voluntária convidava à malícia.

Provavelmente, a maior confusão que as beguinas tiveram foi contra a própria Igreja Católica e suas autoridades, que ficavam irritadas com o fato de elas estarem fora do controle da instituição.

E isso era alimentado, ainda, pelo fato de que algumas dessas comunidades mantinham relações com freis dominicanos e franciscanos, além de comunidades que adotavam outras formas de misticismo, o que levou-as a serem associadas, inclusive, a movimentos hereges.

Assim, ao longo do século 13 as beguinas foram alvo de preconceito e, até mesmo, sofreram com algumas leis restritivas. Por exemplo, depois que o papa Clemente 5º acusou o movimento de heresia, proibindo-o, muitas dessas beguinas, perseguidas, precisaram ingressar em ordens mendicantes e monásticas reconhecidas. Embora algumas resistissem, quando a ordem de dissolução foi extinta, o movimento já havia sido grandemente reduzido.

Algumas comunidades beguinas ainda sobreviveram até o século 20, mas hoje o número já é extremamente reduzido. Considerada a última beguina, Marcella Pattijn morreu no dia 14 de abril de 2013 na cidade de Cortrique, na Bélgica.

Fotografia antiga de mulheres beguinas / Crédito: Foto por Internet Archive Book Images pelo Wikimedia Commons

 

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