Representação de Aníbal e seus elefantes - Divulgação/ Domínio Público
Antiguidade

Aníbal Barca, o homem que deixou Roma de joelhos

Considerado um dos maiores estrategistas da história, ele cruzou os Alpes com elefantes e quase matou o berço o Império Romano

Rodrigo Casarin Publicado em 10/06/2019, às 12h00 - Atualizado em 10/12/2021, às 10h00

Canas, região que hoje no sudeste da Itália, fica a pouco mais de 400 quilômetros de Roma. Foi onde aconteceu uma das maiores, se não a maior, derrota do Império Romano. Havia dois anos que o Exército de Cartago, liderado pelo general Aníbal Barca, marchava pela península italiana, até que em agosto de 216 a.C. aconteceu a principal batalha da campanha.

Em um conflito que durou pouco mais de seis horas, cartaginenses — e os diversos povos que compunham as tropas, como gauleses e ibéricos, anteriormente derrotados e cujas forças foram incorporadas por Aníbal — duelaram com quase 90 mil militares romanos.

Com tamanho suficiente para exigir dois comandantes, Lucius Paullus e Gaius Varro, os romanos começaram a batalha com alguma vantagem, mas logo o Exército liderado por Aníbal, formado por cerca de 50 mil homens, mudou a situação, muito graças às estratégias do comandante.

Aproveitando indecisões dos adversários, cada momento obedecendo às ordens de um dos comandantes, o que causava certa confusão, utilizando formações que encurralavam os inimigos e realizando movimentações que aproveitavam fragilidades nos flancos dos confrontados, o Exército de Cartago conseguiu prevalecer.

Ao cabo, em pouco mais de seis horas, cerca de 70 mil romanos estavam mortos, uma média de quase 200 finados por minuto, com todas as vidas sendo tiradas basicamente pelo fio das espadas, um feito barbaramente sanguinário, mas também extraordinário, sem dúvidas. A batalha — que muitos tratam como Batalha da Aniquilação — se tornou o maior exemplo do que Aníbal Barca era capaz.

“Pode-se dizer que Aníbal esteve presente em um dos acontecimentos-chave da humanidade, quando se dirimiu a hegemonia de um sistema político e econômico, o do Império Romano, que deixaria sua marca pelos séculos seguintes cuja influência se estenderia pelo Ocidente e Oriente", aponta o escritor argentino especializado na investigação de temas históricos Gabriel Glasman no livro 'Aníbal, o Inimigo de Roma'.

"De alguma forma, não se compreende a força e a dimensão que aquele Império — o maior e mais extraordinário da Antiguidade — sem um Aníbal que se atreveu a enfrentá-lo. E até é possível conjecturar que, sem esse enfrentamento, talvez Roma não tivesse sido o que foi, pois a luta contra o genial cartaginês forjou as sustentações que se mantiveram pelos séculos seguintes”, narra o autor.

Cartago como imaginada pelo pintor romântico William Turner / Crédito: Reprodução

 

O império do mar

Cartago surge como uma colônia dos fenícios, povo que habitou a região ao norte da África e leste do Oriente Médio e era diretamente responsável por intermediar boa parte das relações comerciais da Antiguidade. Ocupando a região que atualmente pertence à Tunísia e sendo o principal entreposto para rotas que passavam pela Espanha, Sardenha e Sicília, logo a cidade, fundada em 814 a.C., ganhou corpo e começou a tomar forma de império.

Tornou-se independente em 650 a.C. e república em 308 a.C. Para garantir sua existência, venceu algumas guerras contra gregos entre 480 e 275 a.C., muitas vezes contando com a ajuda dos romanos.

Depois de dar um apoio fundamental para que os cartaginenses vencessem a derradeira batalha contra os gregos, no entanto, os romanos decidiram que era hora de rever a relação. Percebendo as deficiências dos até então aliados, Roma declara belicismo a Cartago em 264 a.C. Começava ali a 1ª Guerra Púnica, que duraria até 241 a.C., deixaria mais de 280 mil mortos e acabaria com os romanos tomando controle de parte considerável do território dos antigos aliados.

O bárbaro — termo romano para todo ser humano não nascido em Roma — que comandava a derrotada Cartago era Amilcar Barca, pai de Aníbal, que deixou uma missão bem clara para o filho aprender, incorporar e carregar consigo ao longo da vida: odiar para sempre os romanos.

Aníbal tinha 9 anos quando ouviu o desejo de seu pai, e levou aquilo muito a sério. Com pouco mais de 20 anos, quando assume o poder de Cartago — Amilcar morrera em 228 a.C. e Asdrúbal, tio de Aníbal, comandara o lugar por um breve momento —, começa a se movimentar para expandir o Império e cumprir o que o progenitor lhe havia pedido.

“Aníbal nasce exatamente 76 anos depois da morte do Alexandre [Magno ou O Grande, que liderou o império macedônico]. Quando ele morre, a bacia do Mediterrâneo vive uma crise por causa do vácuo de poder, cada um passou a fazer ali o que bem entendia", conta o escritor Alex de Bezerra Menezes, que estuda a História de antigos generais e prepara um livro sobre Alexandre.

"Por causa da sua força, Alexandre representava um equilíbrio para a região, comandando a superpotência a qual todos só podiam obedecer. Foi por causa dessa crise que Cartago conseguiu crescer e fazer frente ao império nascente, que era o romano”, continua o escritor.

E Aníbal soube como lidar com essa oportunidade, tanto que virou exemplo para Maquiavel em seu 'O Príncipe'. “Entre as ações admiráveis de Aníbal, alinha-se esta: possuindo Exército muito numeroso, composto de homens de todas as nacionalidades e idades e lutando em terras alheias, não apareceu jamais nenhuma disputa em seu seio, nem com respeito ao príncipe, tanto nos bons como nos tempos adversos", narra.

"Tal fato não deve ser atribuído senão à sua inumana crueldade, a qual, de permeio a infindas virtudes, o tornou sempre venerado e terrível no entender de seus soldados. E estas virtudes, elas sozinhas não seriam suficientes para produzir aquele efeito, não fora a sua desumana crueldade. E entre cronistas pouco comedidos, uns contentam-se em admirar e elogiar esta sua qualidade, outros atribuem a ela todos os triunfos que ele alcançou”, relata o filósofo italiano.

Aníbal cruzando os Alpes no elefante / Crédito: Nicolas Poussin

 

 

Elefantes morro acima

Depois de perder espaço na Primeira Guerra Púnica, Cartago expandiu seu território para a região da Espanha, tomando localidades dos celtas que ali habitavam. No entanto, após conquistarem Sagunto, cidade na atual região de Valência e então protegida pelos romanos, novamente incomodaram o Império que derrotara os cartaginenses algumas décadas antes. Começava ali a Segunda Guerra Púnica, que duraria de 218 a 201 a.C. e proporcionaria a Aníbal a grande chance de vingar seu pai e transformar o ódio a Roma em sangue do inimigo.

A marcha de Aníbal com seu Exército para se aproximar de Roma é outro dos grandes momentos da história militar. Por ter uma Marinha irrisória, não conseguiria alcançar o inimigo via mar — que seria indubitavelmente o caminho mais curto.

Então, com milhares de homens, cruzou a região dos Alpes, na fronteira entre as atuais França e Itália, feito que para muitos era impensável, para conseguir penetrar na Península Itálica. Apenas há alguns anos que pesquisadores desvendaram o caminho exato trilhado pelo comandante: utilizara a Col de la Traversette, uma passagem em meio à cadeia de montanhas próxima a Turim. 

Para chegar até ali, além de encarar picos que permanecem nevados até mesmo no verão, precisou de criatividade para abrir passagem em alguns pontos. “Ele precisava de alguma artimanha para passar por rochas intransponíveis dos Alpes. Alguns historiadores apontam que ele queimava troncos de árvores em cima dessas rochas e na sequência jogava vinagre, o que esfarelava as pedras gigantescas", pontua Menezes.

"Mas não há uma prova cabal sobre isso. Outra hipótese, a mais provável, aliás, é que ele levasse consigo um reservatório de água gelada, que era jogada sobre essas pedras depois que faziam aquela espécie de fogueira, causando um choque térmico que as enfraqueciam”, continua o escritor.

Não bastasse o Exército formado por milhares de pessoas, Aníbal ainda levava consigo cerca de 15 mil cavalos e uma pesada surpresa para os inimigos: 37 elefantes, recurso bélico até então jamais utilizado em uma guerra na Europa.

“O uso de elefantes remonta aos exércitos indígenas da Ásia, e o animal foi largamente usado até meados da era Cristã. Aníbal, sabendo da inferioridade numérica do seu Exército, inovou ao levar para território europeu os enormes monstros como força de ataque e auxílio à cavalaria. Foi um desafio épico transportar quase quatro dezenas de paquidermes pelos montes escarpados alpínicos, sem contar a precariedade de víveres, uma vez que esses animais bebem muita água, cerca de 200 litros por dia, e comem cerca de 200 quilos de ração diariamente. Se já era difícil sustentar um Exército em condições climáticas tão adversas, imagine elefantes."

"Parece óbvio e claro que, para Aníbal, todo o impensável esforço fazia parte de sua tática de guerra, que era amedrontar o inimigo apelando para o tomento psicológico, porque, na verdade, poucos europeus haviam tido contato com elefantes até então, e as histórias que os soldados romanos ouviam era de que os bichos eram devoradores de homens — eles são vegetarianos. É verdade que nenhum dos historiadores, entre os quais Plutarco e Políbio, narra o embate entre os elefantes e o Exército romano, mas parece certo que os animais chegaram até a Itália, e mais uma vez o ardil de um dos maiores generais da História funcionou, porque, por meio do medo, ele venceu batalhas antes de propriamente entrar nas batalhas”, explica Menezes

Era nos conflitos — dentre os mais famosos estão os de Trébia, em 218 a.C., e do Lago Trasimeno, em 217 a.C. — que Aníbal decisivamente mostrava sua genialidade enquanto comandante. Costumava provocar o adversário, mandar pequenos batalhões que seriam perseguidos e levariam os romanos até emboscadas.

Inaugurou, por exemplo, o cerco duplo, estratégia militar na qual duas linhas ofensivas são formadas em pontos distintos. Sabia que batalhas podiam ser vencidas na simples brutalidade do confronto direto e impensado, mas sabia também que planos bem elaborados, deslocamentos precisos e domínio de todo o campo de guerra podiam ser mais importantes e decisivos do que um Exército com mais membros do que o inimigo.

Diferentemente de praticamente todos os lideres bélicos até então, não tinha vergonha alguma em recuar, dar voltas, jogar de acordo com o terreno onde estava e aproveitar a mobilidade de seu Exército para causar sérios problemas para os adversários.

Ao longo da campanha os elefantes foram ficando para trás, morrendo de fome e exaustão, O último a sobreviver foi Sírius, utilizado por Aníbal durante algum tempo como seu meio de transporte — mas Sírius não sobreviveu por mais muito tempo. Durante a marcha o comandante também perdeu a visão de um dos olhos, mas não em consequência do resvalar de uma lâmina, do impacto de um escudo ou algo do tipo, mas por causa de uma picada de mosquito. E assim chegou a Canas.

O grande general contempla a Itália em sua chegada / Crédito: Francisco Goya

 

 

A história que não foi

Com 70 mil romanos mortos a seus pés, Aníbal tomou uma decisão que até hoje surpreende quem tem contato com sua História: parou a marcha rumo a Roma. Mesmo com os romanos apavorados pela possibilidade de terem a capital invadida, o cartaginês estancou o caminhar em Canas.

A principal desconfiança é de que tomou tal atitude por estar com um Exército enfraquecido e não ter armas de cerco suficientes para romper as muralhas romanas, conhecidas na época como praticamente intransponíveis. Acreditando estar em posição de vantagem, propõe um acordo de paz a Roma, mas é imediatamente rechaçado. Durante o impasse, ouve uma verdade de um de seus tenentes: Aníbal Barca é uma pessoa que sabe vencer, mas não tirar proveito da vitória.

O Exército de Aníbal se mantém no sul da Península Itálica por mais alguns anos sem ser importunado pelos romanos. Fábio V, o então mandatário de Roma, decide permanecer atento, mas evitar mais confrontos corpo a corpo até que os invasores desistam do objetivo maior — essa estratégia de só lutar em condições indubitavelmente favoráveis ficou conhecida como Tática Fabiana.

Tempos depois, aproveitando que Cartago ainda estava desguarnecida, Roma envia uma tropa à cidade, o que força Aníbal a regressar com seu Exército para proteger seu próprio território. Dessa forma, perdia a Segunda Guerra Púnica, mesmo sem ter sido derrotado em uma batalha significativa sequer.

Dali em diante, o declínio de Aníbal foi visível. Perdeu batalhas travadas contra o general Cipião Africano e, com os romanos em seu encalço, fugiu para o leste e mudou constantemente de endereço para evitar ser pego pelos seus perseguidores.

Passou por territórios do mediterrâneo, caiu no ostracismo e morreu em Bitínia, região que hoje pertence à Turquia. Uma das versões para sua morte dá conta de que optou por se suicidar bebendo o veneno que carregava consigo em um anel e que, antes de se matar, disse: “Libertemos Roma dos terrores que lhes causa um velho”. Um velho de 64 anos, nesse caso.

Cartago seria tomada pelos romanos na Terceira Guerra Púnica. O objetivo havia se tornado uma obsessão do Senado de Roma, onde o senador Cato proclamou em discurso uma frase que se tornaria famosa: Delenda est Carthago (Cartago deve ser destruída). E foi.

Os cidadãos se tornaram escravos, as cidades foram queimadas e os rastros dos fenícios apagados. E aquele avanço também marcava um dos primeiros movimentos de expansão do Império Romano, que até então se limitava a territórios da Península Itálica.

Aníbal, por sua vez, teve o nome eternizado em um ditado sobre o medo (Aníbal está às portas, referência sobre quando se aproximou de Roma) e ficou marcado como um dos principais estrategistas da História, mesmo sem nunca ter vencido uma guerra.

“O Aníbal inovou muito e foi audacioso. Ele tinha o ímpeto de tentar fazer algo impossível e certamente está entre os cinco maiores generais de todos os tempos. Mas, apesar de tudo, apesar do brilhantismo, das estratégias, ele perdeu. Ganhou batalhas, mas nunca uma guerra. Seu objetivo, que era conquistar o coração de Roma, nunca foi alcançado”, resume Menezes.

Em sua obra, Glasman também lembra de outros aspectos da vida do personagem. “Foi um político e militar tão frio e calculista nos campos de batalha como generoso e diplomático na busca por aliados. Atuou com o sentimento que vinha do seu legado familiar e sem dúvidas representou uma alternativa política para seu povo. Nesse aspecto, brilhou por sua audácia e criatividade: acertou, se equivocou, conheceu os prazeres da vitória e a humilhação da derrota inapelável. Viveu rodeado da admiração de pessoas próximas e distantes, mas morreu sozinho.”

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