Rubens Paiva: realidade e ficção - Arquivo pessoal e Divulgação
Rubens Paiva: realidade e ficção - Arquivo pessoal e Divulgação
Rubens Paiva

Ainda Estou Aqui: Conheça o caso Rubens Paiva, que inspirou o filme

Em entrevista, a jornalista Juliana Dal Piva, autora de 'Crime sem castigo: Como os militares mataram Rubens Paiva', comenta as investigações do caso

Fabio Previdelli Publicado em 26/02/2025, às 19h00 - Atualizado em 28/02/2025, às 18h19

No próximo domingo, 2, acontece a tão aguardada cerimônia anual do Oscar. O cinema brasileiro concorre em três categorias com o filme 'Ainda Estou Aqui' (Melhor Filme, Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, pelo papel de Fernanda Torres como Eunice Paiva). 

O filme, dirigido por Walter Salles, narra como Eunice Paiva enfrentou os Anos de Chumbo e passou a buscar por Justiça de seu marido, o deputado cassado Rubens Paiva — que foi levado de sua casa, em 20 de janeiro de 1971, e nunca mais foi visto. O caso é considerado um dos desaparecimentos mais emblemáticos do período ditatorial brasileiro. 

Independente do resultado, porém, a jornalista Juliana Dal Piva acredita que o filme já marcou a história do nosso país. "Vai sim ficar marcado na história do Brasil, independente do que aconteça", diz em entrevista à equipe do Aventuras. 

A gente está vendo o Supremo Tribunal Federal voltar a discutir o tema [crimes cometidos na ditadura militar], a sociedade tomar conhecimento da história do Rubens Paiva e também abrir espaço para falar dos outros casos. Então, o filme já marcou um tempo e vai ficar na história do Brasil", aponta. 
Crime sem castigo: Como os militares mataram Rubens Paiva
Capa do livro 'Crime sem castigo: Como os militares mataram Rubens Paiva' (Matrix) - Divulgação

No recém-lançado 'Crime sem castigo: Como os militares mataram Rubens Paiva' (Matrix), Juliana esmiúça milhares de páginas sobre as investigações feitas desde 1971 sobre o desaparecimento de Rubens.

O livro também mostra como a ditadura monitorou de perto cada passo dos interessados em desvendar o caso, para garantir que não se chegasse à verdade.

"Eu acho que o filme acaba cumprindo um papel maravilhoso didático de emocionar com uma história que poderia infelizmente ter acontecido em muitos lugares do mundo e aconteceu em muitos lugares do mundo, que é como uma família destruída por uma violência brutal que atravessa ela do dia para a noite. De maneira injustificada e que perdura por décadas", diz Dal Piva.

A seguir, confira a entrevista completa da jornalista Juliana Dal Piva à equipe do site Aventuras na História: 

1. Quem foi Rubens Paiva? Como ele era visto pela ditadura militar?

Juliana: "Rubens Paiva foi um deputado federal do PTB e um engenheiro paulista. Ele foi cassado logo depois do golpe militar, chegou a ficar um tempo fora do Brasil, no início da ditadura e depois retornou, voltou a viver no Brasil, foi morar no Rio de Janeiro com a família e abandonou a linha de frente da política nesse tempo, se preservou para cuidar da própria família e aí passou a atuar como uma ajuda para transmitir informações. 

O deputado Rubens Paiva - Divulgação/ Secretaria de Cultura de SP

 

Ele participava de uma rede de informações de troca, de cartas, porque havia muita perseguição política e é nesse contexto que ele é preso, em janeiro de 1971. O telefone da família é encontrado num envelope com duas senhoras que voltavam do Chile, onde tinham visitado, exilados. Militares da repressão encontram esse número, ligam para casa, descobrem o Rubens Paiva, vão até a casa do Rubens Paiva e prendem o Rubens Paiva. No dia 20 de janeiro de 1971, levaram ele para o DOI-CODI e lá ele foi assassinado, nunca mais foi visto, o corpo nunca apareceu".


2. Qual o contexto da prisão de Rubens Paiva, em 1971?

Juliana: "Ainda sobre o contexto, em 1971, parte do governo era do Emílio Garrastazu Médici, que é um dos militares que ocupou a Presidência da República; um dos ditadores mais violentos, muitas perseguições, assassinatos, desaparecimentos, mortos. 

Havia uma ordem institucional para desaparecer, sobretudo com os dirigentes das organizações de oposição. Mas o Rubens nunca integrou nenhuma organização de luta armada, o que mostra muito como sempre foi uma mentira a ideia de ver o que aconteceu como se fosse uma guerra de dois lados, em que a ditadura reagiu às ações armadas de alguns grupos. 

Não é verdade, muitas pessoas que nunca fizeram sequer parte de nenhum grupo. De luta armada, nunca fizeram militância política, também foram presas, torturadas e algumas até assassinadas. Então esse é um dos momentos mais duros e violentos dos anos 70, de 1970 a 1976. 

Muitas mortes, muitos desaparecimentos e depois até recentemente se encontrou um documento, uma memorando em que é descrita uma reunião entre o Geisel e o general Miltinho, que já era o comandante do Centro de Informações do Exército (CIE), que é um órgão do gabinete do ministro do exército, e lá muitas ações violentas foram tramadas e o CIE, que era chefiado pelo Miltinho, por exemplo, foi informado da morte, foi informado na noite que o Rubens Paiva morreu, foi informado do assassinato. 

Um dos militares que foi acusado pelo assassinato do Rubens Paiva contou isso em depoimento no Ministério Público Federal, que recebeu a ligação. Ele admitiu isso, que soube, apesar da ditadura sempre ter mentido sobre o assassinato, inventou que ele tinha fugido".


3. O que aconteceu com Rubens Paiva após ele ser preso? Por qual motivo o caso Rubens Paiva se tornou tão emblemático?

Juliana: "O Rubens, então, é levado de casa na frente da mulher e dos filhos. É sequestrado e preso, porque foi levado de maneira ilegal, sem uma ordem, sem uma justificativa, sequer legal para isso. Sai de casa dirigindo o próprio carro, e é levado ao DOI-CODI, e nunca mais é visto com vida. 

Eunice e Rubens ao lado da família - Arquivo pessoal

 

Ele é torturado por cerca de 24 horas, pouco mais do que isso, e é assassinado sob tortura. E depois tem a monstruosidade do corpo dele ser enterrado e desenterrado várias vezes pelo Rio de Janeiro para que o corpo fosse ocultado. A ditadura sabia que não podia entregar um corpo todo violentado de uma pessoa que tinha saído de casa, saudável, e da qual tinham várias testemunhas do momento em que ele saiu de casa, foi levado pelos militares. 

Essa era uma situação que podia gerar um escândalo imenso. O documento em si já foi um escândalo, imagina se tivesse aparecido o corpo. Então, eles começam uma operação muito ruim, muito frágil, de tentar inventar uma história de que ele teria fugido. Fazem uma perícia, forjam um tiroteio no Fusquinha, no Lote da Boa Vista, e produzem uma documentação sobre isso, o que permite anos depois identificar quem eram as pessoas que estavam no DOI-CODI naquela noite, tanto entre as testemunhas do caso como dos assassinos do Rubens Paiva. 

É uma diferença crucial, sobre grande parte dos casos de desaparecidos, a maioria deles foi presa no que eles chamavam de um ponto, que era um momento de encontro entre militantes, e aí não tem testemunhas disso. Às vezes a pessoa era presa sozinha, levada, sequestrada, no momento que não tinha ninguém para ver aquilo. E depois também uma dificuldade muito grande para identificar quem eram os militares que tinham levado. Muitas vezes a gente não sabe quem são os torturadores porque não tem registro nenhum do momento em que a pessoa foi presa. 

No caso do Rubens tinha. Tem tudo isso em função da mentira que eles tiveram que contar. O caso dele vai se tornar emblemático, para mim, em parte por causa disso, dessa singularidade e também por ele nunca ter integrado nenhum grupo de luta armada, não ter nenhuma ação armada, não estava armado quando foi preso. 

Então cai muito essa história de que os militares combateram militantes armados, combateram a violência de grupos da luta armada. Isso não é verdade. O Rubens estava em casa com a família e os filhos e é levado de maneira arbitrária, autoritária e assassinado com uma violência brutal. Então isso deixa evidente como a ditadura foi monstruosa, atingiu grande parte da sociedade brasileira, muito mais do que os grupos que combatiam a ditadura".


4. Por que o Brasil ainda é tão mal resolvido com assuntos relacionados à ditadura? Por que países como Argentina e Chile parecem se importar muito mais com a busca pela verdade do que nós?

Juliana: "O Brasil viveu uma transição incompleta, nunca tratou de maneira concreta, estrutural com as consequências da ditadura. Sempre foi muito pactuado. A lei de anistia é feita de uma maneira muito arbitrária, ainda durante a ditadura em 1979. Os militares só vão deixar o poder em 1985, ao mesmo tempo em que esses crimes nunca foram investigados. A lei de anistia é um cheque em branco. 

Você não sabe que crimes foram anistiados, cometidos por quais criminosos. Uma situação muito diferente seria a gente ter o esclarecimento dos crimes e aí discutir se é aplicar a lei de anistia ou não. Que é o que a gente tá agora vendo essa discussão chegar ao Supremo Tribunal Federal, para justamente não deixar anistiar os crimes contra a humanidade: desaparecimento forçado, estupro, execução sumária, que em contextos ditatoriais são crimes contra a humanidade, são crimes permanentes. 

E o Brasil não fez reforma das suas instituições, os militares ainda são formados da mesma maneira como se formavam na ditadura, ainda tem comemoração de 'revolução' em 31 de março. Há uma coisa de querer pactuar para esquecer o que aconteceu, como se isso permitisse a gente seguir adiante, mas não se constroi justiça, muito menos democracia, com base no esquecimento.

A Argentina tratou tudo isso de maneira muito diferente, criando a comissão dos desaparecidos deles, logo após a saída dos militares da presidência da república. Lá, a gente vai reconhecer a existência de desaparecidos políticos da ditadura em 1995, 10 anos depois que os militares saíram do poder. Isso dá uma consequência imensa. E também só vai criar a comissão nacional da verdade em 2012.

Só a comissão nacional da verdade podia esclarecer os crimes da época. Tudo isso faz o tempo passar. Os crimes ficarem muito tempo encobertos, os criminosos morrerem. E as pessoas vão tomando menos conhecimento disso ao longo do tempo. Tem menos conhecimento mesmo. Educação para sociedade compreender o que é que foi aquele período. É, isso faz muita diferença entre o Brasil, Argentina e Chile.

Existe às vezes uma visão equivocada como se isso fosse tema das famílias e não, ele deveria ser uma causa de toda sociedade brasileira".


5. Qual foi o resultado do julgamento dos militares envolvidos no caso Rubens Paiva?

Juliana: "O caso ainda não foi julgado. O STF analisa um recurso do MPF para reconhecer o crime permanente e está dando indicações de que reconhecerá. Faz poucos dias que o STF decidiu analisar a repercussão geral da matéria. O ministro Alexandre de Moraes indicou que compreende, sim, um limite para lei de Anistia em relação a desaparecimento forçado. Mas é preciso aguardar o julgamento do mérito, se o STF vai decidir por isso.


6. Nas pesquisas e nos documentos que você analisou sobre o caso, qual aspecto ou passagem mais te surpreendeu/chamou a atenção? 

Juliana: "Eu acho que o mais surpreendente foi entender que a ditadura, na medida em que tentou criar uma história para justificar o assassinato do Rubens Paiva, produziu documentos que depois, anos depois, quando puderam ser analisados na democracia, ajudaram a identificar quem eram os militares que estavam naquela noite no DOI-CODI. 

Eunice ao lado do marido, o deputado Rubens Paiva - Arquivo pessoal

Isso permitiu saber quem eram as principais testemunhas e os assassinos do Rubens Paiva. Na tentativa de forjar uma história, eles deixaram rastros para se chegar à verdade".

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