Entre protestos, canções, amores e repressão, o Brasil viveu um ano de revoluções culturais e políticas cujos ecos ainda moldam a sociedade atual
Edvaldo Silva* Publicado em 12/11/2024, às 16h00 - Atualizado em 14/11/2024, às 07h28
Em meio às efervescentes mudanças sociais e culturais que marcaram o mundo pós-Segunda Guerra Mundial, o ano de 1968 se destaca como um marco fundamental, não apenas nacionalmente, mas em escala global.
As ondas de protestos que eclodiram em países como França, Estados Unidos, Tchecoslováquia e Brasil refletiram uma insatisfação crescente dos jovens de todo mundo com o status quo e um desejo por transformações profundas. Essas manifestações transcenderam o momento em que ocorreram, deixando um legado que influenciou as décadas seguintes e cujas repercussões ainda ressoam na sociedade contemporânea.
Baseando-se nas pesquisas que deram origem ao meu novo romance chamado '1968: Centelhas Sob Palha Seca', lançado pela Editora Serendipity, exploro neste artigo como os movimentos desse período trouxeram impactos profundos nas esferas política, cultural e social no Brasil e como esses acontecimentos ainda reverberam até hoje em nosso país.
O ano de 1968 foi marcado por levantes que reivindicavam mudanças estruturais, liberdade e justiça social. Nos Estados Unidos, o movimento pelos direitos civis, as manifestações contra a Guerra do Vietnã e o assassinato de Martin Luther King foram eventos que escancararam as tensões raciais e a oposição às políticas imperialistas.
+ If I Can Dream: Como Elvis lidou com o assassinato de Martin Luther King?
Na Europa, a juventude francesa tomou as ruas em maio, clamando por uma sociedade mais justa e menos opressiva. Na Tchecoslováquia, a Primavera de Praga representou um esforço em direção à autonomia política e cultural em meio à repressão soviética.
Esses eventos estavam ligados por um fio condutor comum: a busca da juventude por liberdade e direitos sociais, que, para muitos, significava romper com as estruturas hierárquicas, questionar os valores conservadores e abrir novos caminhos para a expressão individual e coletiva. O Brasil, embora inserido em um contexto específico, foi profundamente impactado por esse movimento global.
No Brasil, 1968 foi um ano marcado pela intensificação da ditadura militar, instaurada em 1964. Sob um regime que controlava rigorosamente as liberdades civis e políticas, a juventude brasileira encontrou na arte e na cultura maneiras de expressar sua insatisfação e oposição ao autoritarismo. O movimento Tropicalista, por exemplo, reuniu músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Gal Costa, que mesclavam elementos da cultura popular brasileira com influências estrangeiras, criando uma estética subversiva que desafiava as normas vigentes.
+ "Tive que trabalhar com metáforas", diz Capinan sobre censura na ditadura militar
Além da música, o teatro e o cinema também desempenharam papéis fundamentais. O Teatro de Arena e o Cinema Novo propunham uma crítica social que explorava as contradições da sociedade brasileira e denunciava as injustiças sofridas pelas camadas mais vulneráveis da população.
Artistas como Zé Celso Martinez Corrêa, Glauber Rocha e Augusto Boal, através de obras inovadoras, enfrentaram a censura e conseguiram, em parte, captar a inquietação de uma juventude que ansiava por liberdade de expressão e justiça social.
O ápice da repressão no Brasil aconteceu em dezembro de 1968, com a promulgação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), que concedeu poderes absolutos ao regime militar, fechando o Congresso Nacional, restringindo direitos civis e estabelecendo uma censura ainda mais rigorosa.
Para muitos, o AI-5 simbolizou o fim de qualquer possibilidade de diálogo entre o governo e os movimentos sociais, levando muitos jovens a abraçar a luta armada como forma de resistência.
Entre os que se opuseram ao regime, destacam-se figuras como Carlos Marighella e os grupos que buscaram criar uma resistência armada contra o autoritarismo. Essa repressão brutal não apagou, contudo, os ideais de liberdade, igualdade e justiça social que continuaram a inspirar gerações subsequentes.
As transformações que eclodiram em 1968 tiveram impactos duradouros. Muitos dos valores promovidos naquele ano — como a busca pela liberdade de expressão, os direitos das minorias e a luta contra a opressão — continuaram a reverberar, moldando as décadas que se seguiram e influenciando movimentos contemporâneos.
Nos anos 1980, durante a abertura política e o processo de redemocratização, muitos dos ideais de 1968 ressurgiram com força, inspirando os movimentos pela Anistia, Diretas Já e as lutas por direitos humanos e justiça social. Além disso, o movimento feminista e o movimento negro, que começaram a ganhar voz e visibilidade nos anos 1970, também beberam da fonte de 1968 e fortaleceram suas pautas, lutando contra o racismo estrutural e a desigualdade de gênero no Brasil.
Ainda hoje, muitos dos ecos de 1968 podem ser observados nos movimentos sociais e nas discussões políticas contemporâneas. A luta por uma educação de qualidade, os protestos por melhores condições de trabalho e as manifestações em defesa dos direitos das minorias — todos esses aspectos refletem, em maior ou menor grau, o legado das transformações culturais e sociais daquele período.
Em um mundo cada vez mais conectado e consciente das desigualdades globais, a herança de 1968 continua a alimentar as aspirações por um futuro realmente inclusivo.
O ano de 1968 foi um ponto de inflexão na história do Brasil e do mundo. Através de movimentos culturais e sociais, uma geração inteira ousou desafiar o autoritarismo e questionar as estruturas de poder vigentes, deixando um legado que transcende seu tempo e influencia gerações até os dias atuais.
Ainda que muitos dos problemas enfrentados naquela época persistam, os ideais de liberdade, igualdade e justiça social continuam vivos, movendo os jovens de hoje a lutar por mudanças e a manter acesa a chama de 1968. Essas 'Centelhas Sob palha Seca', ainda ardem, aquecendo o sonho de um mundo mais justo e livre.
Edvaldo Silva* é mestre em Artes e Multimeios pela UNICAMP e pós-graduado em Publicidade pela ECA/USP. Com uma carreira de sucesso em empresas como FOX Latin American Channels (Canais Disney), o Portal Terra (Grupo Telefônica), e a gigante latino-americana dos aplicativos para celular Movile (Naspers Group), ele foi Presidente do Comitê de Ad Tech & Data do Interactive Advertising Bureau.
Na literatura assina o livro 'Da Válvula ao Pixel – A Revolução do Streaming', voltado à área de Publicidade e lançado no Brasil e em Portugal pela Editora Atlântico. Estreou na ficção com 'Além da Fumaça', que foi Menção Honrosa no Latino Book Awards 2023 e finalista do Prêmio ABERST. 1968: 'Centelha Sob Palha Seca' é o segundo romance histórico do autor.
A fúria — e a tragédia — do Chimpanzé Travis
Gladiador 2: Tubarões eram levados para o Coliseu? Historiadora responde
Ainda Estou Aqui: 5 coisas para saber antes de assistir ao filme
Gladiador 2: Confira 5 curiosidades sobre o Coliseu romano
The Office: Relembre 5 episódios que não envelheceram tão bem
Por que os combates de gladiadores chegaram ao fim na Roma Antiga?