Oleg Kalugin em 1991, época da queda da União Soviética - Reprodução

'Não promovi Putin porque ele era medíocre': Oleg Kalugin

Entrevista com o ex-general da KGB que virou casaca

Adriana Maximiliano e Bernardo Weaver Publicado em 11/05/2017, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

O russo Oleg Danilovich Kalugin foi chamado de “popular” e “brilhante” na edição do jornal The New York Times de 11 de maio de 1959. O jovem de 24 anos havia desembarcado de Leningrado no ano anterior para estudar Jornalismo na Universidade de Colúmbia, em Nova York. Bem, isso era o que dizia o Times e pensava o pessoal da Colúmbia. Na verdade, Kalugin era um espião da KGB (sigla em russo para Comitê de Segurança do Estado). Filho de um membro da polícia secreta de Josef Stalin, tinha como missão conseguir informações confidenciais e divulgar o comunismo no território inimigo em plena Guerra Fria.

Entre 1958 e 1970, Kalugin caiu na noite de Nova York e Washington com a intenção de fazer amigos e pagar para que eles ajudassem Moscou a sabotar o capitalismo ocidental. Foi descoberto, voltou para a Rússia e virou, aos 40 anos, o mais jovem general da história da KGB. Mais tarde, enquanto o sistema ruía, desiludiu-se com o Partido Comunista. Em 1990, deixou o cargo na KGB e passou a fazer críticas abertas ao partido. Logo se mudou para os Estados Unidos e ganhou a cidadania americana. Acusado de traição na Rússia, foi condenado a 15 anos de prisão em 2002. Os americanos não pretendem extraditar o russo, que se naturalizou como cidadão americano em 2003 e hoje trabalha no Centro de Estudos de Contrainteligência e Segurança (CI Centre, Virginia, EUA).  

História – Como o senhor virou espião?
Oleg Kalugin – Nasci em Leningrado, em 6 de setembro de 1934, filho de um membro da polícia de Stálin e de uma dona-de-casa. Era um jovem romântico, totalmente dedicado ao comunismo. Acreditava que podia mudar o futuro da humanidade promovendo justiça social, liberdade e essas grandes coisas que fazem parte dos sonhos de um jovem comunista. Queria participar do processo de mudança e sabia que a KGB promovia essas idéias pelo mundo. A profissão de espião era perfeita: romântica, emocionante e uma prova de lealdade ao sistema. Como eu tinha facilidade com línguas estrangeiras (aos 24 anos, Kalugin falava inglês, alemão e árabe, além de russo), não foi difícil convencê-los de que poderia me tornar um bom espião. Entrei para o Instituto de Línguas Estrangeiras da Universidade de Leningrado em 1952 e fui recrutado pela KGB. No fim daquela década, meus superiores cogitaram me enviar para o Cairo (Egito), mas acabaram optando por Nova York, onde cheguei como estudante de intercâmbio.

E quais foram suas primeiras impressões ao chegar aos Estados Unidos?
Fiquei impressionado com Nova York. O tamanho dos edifícios, o ritmo da cidade... Mas não mudei minhas ideias comunistas. Via pobreza, desemprego, problemas de distribuição de renda e educação.

Esse cenário não mudou muito.
É verdade. Os Estados Unidos ainda têm muitos problemas, como qualquer outro grande país no mundo. Mas a diferença é que você vê os americanos sempre tentando melhorar, você vê as pessoas comuns lutando contra o crime, contra a violência, as drogas. Em outros países, o que se vê é cada um querendo levar o seu.

Voltando à sua história, no arquivo do The New York Times há uma matéria, em maio de 1959, sobre jovens que faziam intercâmbio, com destaque para o senhor, sob o título de “Russo popular”. Ela diz que na Universidade de Colúmbia todos o adoravam e, em poucos meses, o senhor foi eleito o primeiro russo do conselho de estudantes da escola de Jornalismo da Colúmbia. O senhor já estava espionando?
Já era um espião do First Chief Directorate da KGB (estrutura responsável por ações em países estrangeiros), mas ainda estava me adaptando e estudando o ambiente. Acho que esse artigo é uma prova de que levava jeito. Ninguém duvidava de que eu era um estudante de intercâmbio com bolsa do Fulbright Scholar (programa entre universidades). E sequer escondi meu coração comunista para ser aceito.

Quando começou a espionar para valer?
Só comecei a espionar pesado quando virei correspondente da Rádio Moscou na ONU (a Organização das Nações Unidas, de 1960 a 1964) e depois como porta-voz da embaixada soviética em Washington (de 1965 a 1970). Só fui descoberto em 1970 e voltei para Moscou (Kalugin foi denunciado como o “espião playboy” pelo jornalista investigativo Jack Anderson, que tinha sua coluna publicada em cerca de mil jornais).

Sua espionagem já foi classificada como “agressiva”. Por quê?
Não ficava esperando as informações caírem na minha mesa. Saía quase todas as noites, ia a festas e boates, procurava pelas pessoas-chave, ficava amigo e oferecia muito dinheiro em troca de informação ou influência na opinião pública. Meu salário na época era de 700 dólares e eu pagava mil dólares por boas informações. Havia um oficial da embaixada alemã que, duas vezes por mês, me dava um pacote gordo com cópias de documentos secretos em troca do dobro do meu salário.

E como era essa vida de playboy para um russo comunista?
Tinha até um cartão da KGB para gastar à vontade. Minha função era fazer amigos e deixá-los beber todas por minha conta. Era um playboy, sim, mas um playboy com uma boa causa (risos). Pegava, por exemplo, a lista de nomes do Departamento de Estado e analisava um por um para saber quem poderia ser meu amigo. E, então, ia atrás daquelas pessoas socialmente. Ah, eram todos de esquerda ou pelo menos simpatizantes da esquerda. Se o cara era de direita, ficava muito mais difícil convencê-lo a colaborar.

 O jornalista Jack Anderson, quando revelou sua profissão, disse que o senhor seduzia mulheres. É verdade?
Não, eu não costumava seduzir mulheres sexualmente. Geralmente, as espionagens que envolviam sedução e sexo eram feitas por mulheres. Aqui em Washington havia a Jennifer Miles, uma diplomata sul-africana que espionava para Cuba e dormiu com mais de 100 homens, incluindo figurões do Departamento de Estado e das Forças Armadas americanas. Eu era um espião sedutor no sentido de seduzir homens e mulheres para armadilhas. O que podia acontecer, às vezes, era de o alvo se apaixonar por mim.

O senhor pode contar um desses casos?
Certa vez, quando trabalhava em Nova York como correspondente da Rádio de Moscou, um dos meus alvos era uma jovem canadense, que trabalhava para o comitê da Europa Livre. Esse comitê era uma das instituições que eu deveria espionar. Éramos dois devotos: ela uma católica devota; eu, um comunista devoto. Nos entendíamos bem, saímos várias vezes e cheguei até a ir a missas com ela só para agradar. Ela estava prestes a virar minha informante quando perguntou se eu era casado. Eu disse que sim e ela entrou em crise. Dizia: “Meu Deus, eu estava saindo com um homem casado! Que horror!”. Há pouco tempo, falei sobre ela com um diretor do Spy Museum que era da CIA na época e hoje é meu amigo. Ele me contou que a CIA queria usá-la para arrancar informações importantes de mim! (risos) E ela se negou, dizendo que gostava de mim e não conseguiria fazer isso...

Por que ser espião tem tanto glamour?
O glamour é coisa do James Bond. O que você vê nos filmes não tem nada a ver com a realidade. Espionar é um trabalho de persistência. Vou descrever em poucas palavras os grandes desafios da profissão: transformar o inimigo em amigo e construir uma ponte segura de entendimento entre mim e meu informante. Era excitante conhecer pessoas, virar amigo delas e transformá-las em meus informantes. Mas a profissão se misturava com minha vida pessoal. Não havia glamour naquilo.

Como foi voltar para Moscou depois de 12 anos morando fora?
Foi complicado descobrir minha impotência diante de todos os problemas da União Soviética. A década de 80 foi cheia de decepções e matou aquele jovem romântico. Vivíamos num estado totalitário. Havia injustiças e mentiras por todos os lados, meu povo estava sofrendo. Em 1987, fui dispensado do meu trabalho e, em 1990, deixei a KGB de vez e entrei, eleito pelo povo, para o Parlamento russo. Eu sempre me identifiquei com o povo, mas não com o governo. A perestroika (processo de abertura russa) me deu liberdade para fazer o que quisesse e escolhi enfrentar o Partido Comunista. Isso desagradou muita gente.

Como o atual presidente da Rússia, Vladimir Putin?
Putin era um dos meus 3 mil subordinados na KGB. Ele é um mau-caráter, e lamento que a Rússia esteja hoje sob seu comando. Certa vez, tinha que dar uma promoção para ele ou outro subordinado. Escolhi o outro, porque ele era um medíocre.

E por que o senhor decidiu voltar para os Estados Unidos?
Voltei porque me sentia bem aqui. Em 1994, lancei meu livro, The First Directorate ("O primeiro diretório", sem versão em português), revelando muitos segredos, mas nenhum nome. Nunca mencionei nomes porque teria que provar as histórias na corte e isso seria muito difícil. Também não falei sobre assassinatos, torturas e coisas desse tipo, porque nada disso fazia parte do meu trabalho. Eu era como um diplomata da KGB, e foi o que contei no livro. No ano seguinte, recebi uma proposta para dar aula na Universidade Católica de Washington e nunca mais voltei para a Rússia. Putin já tinha me processado, sabia que seria arriscado pisar lá de novo.

Mesmo antes de lançar seu livro, o senhor virou uma celebridade e aparecia quase diariamente na TV, nos jornais e rádios dos Estados Unidos. A intenção era conseguir uma boa editora?
Não, eu queria era me manter vivo. Minha melhor defesa até hoje é estar na mídia. Se estivesse me escondendo, poderia ter sido assassinado faz tempo e ninguém notaria. Como estou na mídia, devem pensar duas vezes antes de me matar.

Num artigo da New Yorker sobre os assassinatos cometidos pelo governo russo apontava o senhor como o primeiro alvo de Putin. O senhor ainda se sente ameaçado?
Não só me sinto, mas sou ameaçado. O governo russo ainda mata seus oponentes e recebi cartas anônimas com ameaças de morte. Entreguei ao FBI.

Sua mulher sabia de suas espionagens?
Lyudmilla sabia o que eu fazia, mas não sabia detalhes. Ela não fazia perguntas e eu não falava nada. Fomos felizes durante 47 anos, até sua morte, de câncer, em 2001. Tivemos duas filhas: uma mora em Washington e a outra, em Moscou. Casei-me de novo com outra russa.

Em 2002 o senhor foi condenado por traição. Não pensa em voltar para a Rússia nunca mais?
O poder muda de mãos o tempo todo. E, se eu for julgado com honestidade, serei absolvido. Quero voltar para visitar o túmulo dos meus pais, mas não para morar.

Qual país o senhor vê como lar?
Meu lar, doce lar, é aqui nos Estados Unidos. Passei quase 30 anos da minha vida aqui, vi este país crescer. Sinto-me americano e amo este país.

O senhor acredita que ainda existam espiões como na época da Guerra Fria?
Claro, a maioria das grandes potências tem espiões. Na época da Guerra Fria, a motivação era ideológica. Agora, as questões são econômicas e de segurança interna.


Saiba Mais
 Livro, The First Directorate, Oleg Kalugin. 1994

Personagem

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