Da liberação sexual ao terrorismo, o mundo atual nasceu com o conflito
Fábio Marton Publicado em 28/07/2018, às 07h00
A Primeira Guerra é uma espécie de patinho feio da cultura popular. Só para se ter uma ideia, existem poucos filme sobre o conflito, enquanto a Segunda Guerra existem inúmeros. É fácil entender por que não rende muito entretenimento. Soldados atolados por meses em trincheiras para morrerem de gangrena nos pés ou serem forçados a avançar inutilmente contra metralhadoras dificilmente são material para blockbuster. As máquinas eram poucas, lentas e desengonçadas. E, se a Alemanha faz as vezes de vilão, o Kaiser Guilherme parece um monge tibetano se comparado a Adolf Hitler.
Essa ausência talvez seja inevitável, mas é também completamente injusta com a importância da Primeira Guerra. O mundo de hoje foi parido pelo massacre. A seguir, vários aspectos da realidade atual que só existem por causa do confronto.
O historiador britânico Eric Hobsbawn marcava a Primeira Guerra como o fim do que ainda se ensina no Brasil como “Era Contemporânea”, período iniciado na Revolução Francesa. Para ele, o confronto marca o nascimento do “Curto Século 20”, que acabou com o fim da União Soviética, em 1991. Quando o conflito se iniciou, ainda se vivia no tempo de reis, condes e marqueses. O centro de poder do mundo era essa velha Europa, que dominava incríveis 80% da área do mundo por suas possessões coloniais.
Três grandes impérios morreram de uma vez: a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. Ainda que França e Grã-Bretanha tenham terminado herdando terras dos vencidos, essas colônias estavam com os dias contados: a obrigação de lutar ao lado de seus opressores fomentou o nacionalismo, movendo povos como indianos e egípcios a se lutarem por sua independência. Após a grande guerra seguinte, os impérios desabariam como um castelo de cartas.
E quem daria as cartas no século apareceu então. “A primeira Guerra Mundial anunciou o fim da dominação europeia, pois os verdadeiros vencedores foram Estados Unidos e Japão”, afirma a historiadora Sally Marks, autora de diversos livros sobre o conflito. Ao entrarem na guerra, os EUA quebraram uma velha tradição de não intervenção em assuntos europeus, que vinha desde sua fundação. A Primeira Guerra foi a primeira vez que o país mandou tropas para impor a democracia. “A noção de que se pode criar democracia e, portanto, paz, é de Woodrow Wilson” – afirma o historiador americano Jay Winter, da Universidade de Yale – “George Bush era basicamente um wilsoniano.”
Além de sair de seu armário isolacionista, os Estados Unidos mantiveram sua estrutura intacta no conflito, enquanto todas as potências europeias tiveram de se reconstruir. O que foi feito, em grande parte, com dinheiro americano, que também havia financiado suas armas durante a guerra. “Os Estados Unidos foram transformados pela guerra de um país devedor a credor, uma posição que mantém ainda hoje”, diz Winter.
Lutando do lado dos aliados, o Japão derrotou as forças da marinha Alemã no pacífico, ganhando colônias e, pelo apoio prestado, conseguindo a aceitação europeia para seu domínio sobre a Ásia. “Havia muita simpatia pelo país como o representante do ocidente civilizado no oriente bárbaro”, afirma Sally Winters. Indiretamente, essa é a razão porque a pátria de guerreiros tornou-se a colorida e pacífica democracia atual. A pretensão imperial desencadearia a trágica participação do Japão na Segunda Guerra do lado errado, levando à derrota e reconstrução sob supervisão americana.
Mas talvez a mais importante novidade foi a União Soviética, país nascido do conflito, por uma revolta contra os fracassos em capo de batalha, que levou à abdicação do Czar em fevereiro, seguida por uma revolução dentro da revolução, em 7 de novembro. A Revolução Russa e o poder soviético pautaram todo o debate político do século 20, e seus fantasmas ainda assombram o mundo – a recente crise na Ucrânia e as reações à incorporação russa da Crimeia fazem eco a vários medos tidos por superados.
Num mundo dominado pelos Estados Unidos, os assuntos que pautaram toda a editoria internacional da década passada foram americanos: terrorismo e a Guerra do Iraque. Ambos tem sua origem na Grande Guerra.
O conflito começou, afinal, por um atentado terrorista – que, em suas consequências, foi muito mais longe que aquele orquestrado pela Al Qaeda em 2001. Em 28 de junho de 1914, um adolescente de 19 anos, Gavrilo Princip, matou a tiros o Arquiduque Ferdinando, herdeiro ao trono do Império Austro-Húngaro. Era um ato de terrorismo suicida – após o ataque, Princip tomou uma cápsula de cianureto, que não funcionou. A ideia era forçar o Império a entrar em conflito com a Sérvia – e essa parte funcionou, levando às declarações de guerra em cascata, através de várias alianças, que deram início à Grande Guerra. Princip provou que, num ato de provocação, uma única pessoa podia ser capaz de mudar a história. “De persas maneiras, o ataque ao World Trade Center foi um eco direto dessa provocação”, afirma Jay Winter.
Além do terrorismo, o radicalismo islâmico também tem origem no confronto. A queda do Império Otomano, aliado da Alemanha e Áustria-Hungria, pôs o islã em crise. Os sultões turcos chamavam a si próprios de califas, isto é, detentores da autoridade do profeta Maomé. Palestina, Síria, Jordânia, Líbano e Iraque passaram a ser dominados por cristãos europeus. A Arábia Saudita, primeiro país a abraçar o islamismo ultraconservador wahabita, nasce em 1932, do vácuo de poder após a queda do Império.
No Egito, país dominado pelo Império Britânico desde antes da guerra, em 1928 foi fundada a Irmandade Muçulmana, considerada a precursora de todas as entidades do islã radical. Essa é, na opinião de Winters, a mais importante consequência de toda a guerra: “a instabilidade nas zonas desapossadas do antigo Império Otomano toma hoje desde o Mar Negro até o Oriente Médio e a África do Norte”.
O terror também vinha dos exércitos, na forma das armas químicas, as primeiras de destruição em massa. Os franceses começaram em 1914 com gás lacrimogêneo. No ano seguinte, ambos os lados passariam a usar versões letais. Até o fim da guerra, 88 mil soldados padeceriam, e mais de um milhão seriam atingidos, às vezes com sequelas para o resto da vida. Para quem se lembra de como a Guerra do Iraque começou, em 2003, com a caçada pelas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein, não é difícil ver no que isso implica no mundo atual.
Obviamente, o impacto brutal da Grande Guerra foi sentido na cultura. “A grande guerra tomou parte o que era, comparado ao nosso, um mundo estático, nos quais os valores pareciam estáveis”, escreveu o historiador Paul Fussel em The Great War and Modern Memory (sem tradução). Esse mundo de valores fixos nos séculos seria uma vítima da guerra.
Primeiro, foram os jovens. Os sobreviventes receberam da escritora americana Gertrude Stein a alcunha de lost generation, “geração perdida”. Perdidos, de acordo com ela, num sentido de “sem rumo”, não mortos. A reação aos anos de horror, seguidos pela relativa prosperidade, foi o hedonismo. A década seguinte foi chamada pelos americanos de roaring twenties, os “furiosos anos 20” – a era de ouro do sexo, álcool e jazz.
O namoro foi inventado – o que havia antes era a “corte”, um interessado se apresentando polidamente aos pais da moça e, caso aceito, apenas conversando com ela a uma distância segura, sempre com um parente no meio para supervisionar. O ícone máximo do novo comportamento foram as “flappers”, as moças modernas da década de 20, que abandonaram os espartilhos e penteados por saias e cabelos curtos, e passaram a namorar, fumar e beijar em público.
“Enquanto muitos lutavam para se manter nos limites das velhas normas de moda e comportamento, a nova prosperidade e mobilidade estavam movendo um caldeirão de mau comportamento”, afirma o escritor Thomas Streissguth em The Roaring Twenties (sem tradução).
A arte também se radicalizou, refletindo a nova realidade instável e violenta. O modernismo surgiu de antes da Grande Guerra, mas, até os anos 20, sofria vaias quase universais dos críticos. Se as artes plásticas já tinham seus Picassos e Matisses, a arquitetura, design de objetos e, particularmente, a literatura ainda eram praticamente as mesmas da época vitoriana. Os anos 20 viram a ascensão na arquitetura e design da Art Deco, que desviava das convenções aceitas por séculos. A Alemanha tornou-se um dos maiores centros da vanguarda artística, com o chamado expressionismo alemão e a escola de artes Bauhaus, que buscou eliminar toda a decoração inútil dos objetos cotidianos – basicamente a origem do design moderno. Isso tudo para o grande constrangimento dos nazistas, que tentaram banir o modernismo após sua subida ao poder.
Os nazistas eram um dos poucos que tinham nostalgia em relação à Grande Guerra. “Havia dos campos entre os veteranos traumatizados”, afirma o historiador Jay Winter. “Aqueles que, como Hitler, imploravam pela chance de reescrever o final da guerra e punir aos ‘criminosos de novembro’, responsáveis pela humilhação da Alemaha em 1918 e 1919. E aqueles que acreditavam que a guerra nunca mais deveria acontecer”. A Grande Guerra deu, assim, origem aos fenômenos opostos do pacifismo e nazismo. Um dos quais permanece atual e o outro, infelizmente, se recusando a se tornar memória.
Por fim, a última vítima da Grande Guerra foram os manuais de combate. A tática militar favorita era a mesma da época de Napoleão: formar linhas largas de soldados, disparar uma vez e avançar aos berros com baionetas – auxiliados por cavalaria armada por sabres. Aviões eram tidos por apenas um fascinante brinquedo novo. Carro de combate tinha quatro patas.
Foram necessários muitos fracassos para os generais – particularmente os franceses, que se gabavam do “espírito de ataque” e usavam uniformes azuis e vermelhos – se conformarem ao fato que metralhadoras significam que avançar em grandes blocos significa jogar os soldados num moedor de carne. O resultado foi uma guerra de trincheiras, até essas mesmas se torarem obsoletas diante de outra invenção da época: o tanque.
Criado pelos ingleses e adotado pelos franceses, o veículo que cruzava trincheiras e era à prova de metralhadoras se mostraria decisivo ao finalmente quebrar as defesas alemãs na Batalha de Amiens, em 8 de agosto de 1918, que daria fim à guerra – e início ao mundo atual.
The Ebbing of European Ascendancy: An International History of the World 1914-1945, 2002, Sally Marks
Remembering War: The Great War between Memory and History in the 20th Century, 2006, Jay Winter
The Great War and Modern Memory, Paul Fussel, 1975
The Roaring Twenties, Thomas Streissguth, 2006
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