Em novo livro, autoras mergulham nos contos de fadas e desafiam as percepções tradicionais
Redação Publicado em 03/10/2023, às 16h41
De qual você gosta mais? A sequestrada, a dopada ou a estuprada? Sim! Estamos falando das princesas e dos contos de fadas. E é assim que Nicole Aun e Alessandra Rodrigues se referem às violências a que as mulheres são submetidas a partir do encantamento que histórias milenares e de manutenção do patriarcado se propõe.
Por isso, no próximo dia 20 de setembro elas lançam o livro "Histórias para quem dormir? - Expondo os contos de fadas para despertar", pelo selo "Atreva-se" da editora Claraboia.
Em um mundo permeado por narrativas românticas que moldam nossas aspirações desde a infância, as autoras escreveram um livro que mergulha nas profundezas dos contos de fadas e desafia as percepções tradicionais sobre o amor, o gênero e o papel das princesas.
Com ilustrações de Tainah Negreiros, a obra é, segundo as autoras, uma forma de desvendar os dispositivos patriarcais dos contos de fadas e sugere uma nova perspectiva para os leitores, sobretudo as mulheres. Mas é importante lembrar: não é um livro contra as princesas, mas sobre o cuidado que se deve tomar com príncipes.
A semente para o livro foi plantada durante a aplicação do jogo "Nomear para Combater", desenvolvido por Nicole e Alessandra, do Movimento Atreva-se!, que é um movimento feminista que cria ferramentas para nomear e combater o machismo no cotidiano, durante uma atividade em colaboração com a ONG "Gerando Falcões", ao questionar a origem do imaginário romântico das meninas, surgiu a percepção de que os contos de fadas podem estar influenciando fortemente suas visões sobre o amor. Com isso em mente, as autoras se dedicaram a estudar as princesas criadas por grandes conglomerados sob uma nova perspectiva, buscando revelar os dispositivos patriarcais presentes nessas histórias.
Assim, a obra traz capítulos que falam sobre como "A Bela e a Fera" não fala de amor, mas de cárcere privado, "A branca de Neve" e o trabalho gratuito para o capital, "A Bela Adormecida" que foi adormecida, "A pequena sereia" que não era amor, mas autoanulação, a Mulan, que está sempre em guerra, Moana e o triunfo da meritocracia, entre outras histórias que despertam o olhar para como as crianças podem ser manipuladas pelo patriarcado.
"A gente vai tentando, mesmo que no campo das ideias, criar frestas no muro que é o patriarcado com suas escolas de princesas. Uma tentativa de reação, uma legitimidade a nossa teimosia, a teimosia dos que resistem, afinal é só assim que dá pra seguir, né? Penso que o livro pretende ser mais uma ferramenta para quem quer derrubar o patriarcado, tomara que sirva!", declara Nicole.
Para Alessandra, há uma disputa de narrativas e o livro convida as pessoas a colocarem uma lupa em histórias ditas universais feitas para mulheres há muito tempo e que moram no imaginário das meninas como uma receita única a ser seguida.
"É mais uma aula de humanizar a mulher (dita) princesa, e rever os príncipes. Derrubar não, mas facilitar que as pessoas enxerguem o tal do patriarcado no seu cotidiano e sacar seus métodos, como ele opera é um desejo!", pontua.
Além do romance, as autoras propõe, com o livro, desvelar a meritocracia nas princesas modernas, como as guerreiras, as que precisam estar sempre em luta, as que, através da meritocracia, recebem algo em troca de seus esforços.
A obra funciona também como um convite para olhar mais de perto a lógica neoliberal que tenta, a todo custo, manter as mulheres sob rédeas curtas.
"Ao estudarmos as princesas dos filmes entendemos que o buraco é muito mais fundo do que apenas o perigo em criarem um imaginário de amor romântico, entendemos que são grandes produtoras e divulgadoras de dispositivos patriarcais e capitalistas revelados a nós por muitas autoras como Simone de Beauvoir, Silvia Federici, Sueli Carneiro, Cida Bento, Oyeronke Oyewumi, dentre tantas, que vão desde determinar o comportamento ideal para uma menina encontrar o amor como em Cinderela, até a normalização do trabalho gratuito revestido de cuidado como A Branca de Neve , passando pela conversinha meritocrática que nos convence que sozinha (ou quase sozinha) é possível mudar a história de toda uma comunidade, como faz Moana, Frozen, Valente e Mulan, por exemplo", dizem as autoras.
O livro é um convite à desconstrução das narrativas românticas tradicionais. A partir do desprincesamento, propõe uma leitura crítica das histórias que nos são apresentadas desde a infância, expondo as mensagens e ideologias muitas vezes prejudiciais que esses contos podem transmitir. Ao fazer isso, o livro busca empoderar os leitores a enxergar além das aparências e a reconhecer os padrões patriarcais subjacentes.
"Foram nos convencendo que podemos nomear violência como amor e descobrir isso dói muito. 'É mais fácil a gente perceber a violência na história da Branca de Neve, por exemplo, que não existe, e trazer para nossa vida uma maneira de pensar sobre isso, do que perceber que estamos vivendo essa violência e por isso nos identificamos tanto com a tal princesa", explica Nicole.
Com a obra, Nicole e Alessandra exploram como o patriarcado tem influenciado a construção das narrativas românticas, que frequentemente apresentam a ideia de que as mulheres devem ser escolhidas e salvas por príncipes. O livro questiona como essas narrativas contribuem para a perpetuação das desigualdades de gênero e como elas são utilizadas para controlar as aspirações e expectativas das mulheres.
"Sabe aquela festinha que você foi, que estava lotada de mulheres, e só tinha um cara que ficava escolhendo qual das mulheres do salão ele iria convidar pra subir na ala vip?
Então, o Conto da Cinderela já fala disso há muito tempo. O poder da escolha está com o homem. A gente não acha esquisito que um conto deste tão machista, seja contado pras meninas pequenas e ate hoje ainda seja forte? Por isso, escrevemos o livro, que ora é bonito, ora divertido, ora direto sobre assuntos que todos carregamos na mochila amor, escolha, violência, além de falar sobre direitos humanos e todos os humanos", conta Alessandra.
"Histórias para quem dormir?" não apenas critica as narrativas tradicionais, mas também oferece ferramentas para repensar esses padrões. O livro convida os leitores a analisar suas próprias crenças sobre o amor romântico e a relação entre gênero e afetividade. Ele oferece uma oportunidade de enxergar as histórias de princesas como portadoras de mensagens complexas e, muitas vezes, problemáticas.
Nicole Aun é diretora de teatro, roteirista, ativista feminista, escritora e educadora social. Co-fundadora do Movimento Atreva-se. Uma das criadoras dos jogos “Nomear para Combater” e “Histórias para quem dormir?”. Autora do livro Nomear para combater: Uma tentativa de organizar a raiva para virar pensamento, pelo selo Atreva-se, em parceria com a editora Claraboia.
Alessandra Rodrigues é terapeuta ocupacional, especializada em atendimento de grupo e família pela abordagem sistêmica, e prática terapêutica grupal com mulheres e jovens em instituições públicas e privadas. Ativista feminista pelo Movimento Atreva-se atuando com os jogos “Nomear para combater” e “Histórias para quem dormir?”. Fotógrafa e curadora visual do Projeto Paisagem Pública Galeria de Arte. Curadora no Movimento Atreva-se e no Projeto Mulheres, Visualidades, Obra e Cotidiano.
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