Durante a ditadura, uma antiga embarcação serviu de prisão para opositores no litoral paulista
Giovanna Gomes Publicado em 08/08/2023, às 14h06 - Atualizado em 11/08/2023, às 14h32
Em 2012, quase cinquenta anos após terem sido libertados da prisão, dois homens que foram alvo da ditadura militar se reencontraram em Santos, no litoral de São Paulo.
Foi lá que, em 1964, ficou atracado o Raul Soares, navio em que ficaram presos o médico Thomas Maack e o agora aposentado Argeu Anacleto da Silva, que fazia parte do sindicato dos operários portuários e foi detido no dia 1º de abril.
Quando fomos presos, a diretoria toda estava sob condenação pelo regime militar que tomou posse. Então, no dia 11 de maio nós fomos transferidos para o navio, porque ele veio para ser o cárcere dos trabalhadores", contou Argeu à TV Tribuna em 2012.
Porém, apesar das lembranças difíceis do período em que esteve a bordo do navio, o entrevistado sorria ao falar do amigo médico. "Ele me deu muitas receitas porque eu tinha gastrite. Eu comia duas bandejas", disse ele à fonte.
Maack, que vive com a família nos Estados Unidos desde que foi expulso do Brasil pelos militares em 1964, veio ao país sul-americano para ser homenageado na Câmara de Vereadores de Santos. Na ocasião, ele foi lembrado também por sindicalistas portuários que deram-lhe uma placa.
Fisicamente é a primeira vez que eu olho diretamente onde eu estava. É quase inimaginável poder voltar. Faz 48 anos. E pensar que um dia eu estava naquele navio e depois de 48 anos que saí do país tive uma filha, carreiras profissionais, isso é quase inimaginável", conta Thomas.
"Fui levado para o DOPS, fiquei lá uma tarde. Fui pelo exército e transferido para o quartel de Quitaúna. E fui transferido para o Raul Soares, fui para lá à noite, me deixaram em uma cela inundada, tinha só um beliche superior. Mas não dava para ficar em pé sem molhar, a água ia até os joelhos, e era muito frio", disse Thomas.
Nascido na Alemanha, o médico chegou ao Brasil ainda bebê. Ná época da prisão, o profissional era um jovem de 29 anos e dava aula na faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
"Às vezes tinham boatos, saíam caixões do navio. E, elas [as famílias dos prisioneiros] falavam para os guardas, olha lá o que vocês fazem com as pessoas do navio", afirma ele, que ficou quatro meses desaparecido antes que sua esposa, Isa Tavares Maack, descobrisse seu paradeiro
Um mês e meio mais tarde, Isa seria chamada para ser interrogada. Segundo a mulher, isso a deixou muito contente, já que sabia sabia que, uma hora ou outra, poderia ver o marido.
Uma ou duas semanas depois, eu pude começar a visitá-lo uma vez por semana, aos domingos", afirmou.
Conforme destaca o portal de notícias G1, poucos são os registros de dentro da histórica embarcação. Um deles é uma foto tirada durante uma visita aberta a jornalistas — que foi uma maneira encontrada pelos militares de acalmar a sociedade e mostrar que os presos estavam bem.
Na imagem, é possível ver um dos integrantes do sindicato dos operários portuários, Iradil Santos Mello, o pai da jornalista Lídia Maria de Mello, que na época tinha apenas seis anos. Décadas após a prisão do pai, ela publicou um livro sobre o Raul Soares, além de uma série de matérias sobre o tema no jornal A Tribuna.
"Perguntavam se ele acreditava em Deus, se ele era comunista, ficavam fazendo perguntas aparentemente absurdas. Então, periodicamente ele era convocado para prestar depoimentos, e as perguntas eram sempre dessa forma. Ele foi preso e foi solto. Mas o problema começou aí, ele foi processado e esses processos se arrastaram na Justiça por muitos e muitos anos", contou Lídia.
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