A embarcação de guerra francesa Tartu (um D636) - Wikimedia Commons
América do Sul

Como um crustáceo quase mergulhou a América do Sul em um conflito

Conheça o curioso episódio que, por pouco, não teve desdobramentos catastróficos

Ricardo Lobato Publicado em 01/01/2021, às 09h00 - Atualizado em 04/09/2023, às 15h35

Marinha e Força Aérea mobilizadas; planos de uma invasão terrestre a uma nação até há pouco considerada “amiga” sendo esboçados; e uma campanha de forte apelo popular conclamando o povo brasileiro à defesa da pátria e de suas riquezas.

Em quase estado de beligerância, os discursos eram cada vez mais afrontosos nos dois países, mas a guerra nunca aconteceu. Este estranho episódio, que colocou Brasil e França em lados antagônicos, ocorreu por conta de um simples crustáceo: a lagosta.

A “guerra que nunca foi”, que por pouco não mergulhou a América do Sul no maior conflito desde a Guerra do Paraguai, ficou conhecido como a “Guerra da Lagosta”.

A intriga

No início dos anos 1960, o Brasil se viu no meio de um contencioso diplomático, no mínimo, curioso, por pouco não evoluindo para uma guerra.

Tudo começou em 1961, quando barcos pesqueiros franceses que inicialmente se detinham à costa da Mauritânia, na África, atravessaram o Atlântico e passaram a pescar lagosta em águas territoriais brasileiras.

Pescadores pernambucanos, percebendo o aumento de barcos franceses, reclamaram com as autoridades locais. Foi assim que o almirante Arnoldo Toscano decidiu enviar corvetas da Marinha do Brasil para a região.

A missão tinha um duplo objetivo: analisar a situação e, se confirmada, escoltar os pesqueiros franceses para fora das águas brasileiras.

Ao serem abordados por navios de guerra da Marinha do Brasil — que pacificamente solicitaram que eles cessassem suas atividades e se retirassem — os pescadores franceses pediram ajuda à sua Marinha de Guerra.

Sem condições

Este foi o estopim, o cenário estava armado. Alegando que estava defendendo seus nacionais, o governo francês do presidente Charles de Gaulle enviou destróieres para a região.

O Itamaraty exigiu explicações, planos para uma possível invasão da Guiana Francesa (nunca postos em prática) começaram a ser pensados e, nos jornais, lia-se “Frota naval da França ronda costa do Brasil”.

Mesmo sabendo que não teriam condições de lutar uma guerra contra uma potência nuclear, as Forças Armadas Brasileiras mantiveram-se firmes. Foram enviados mais navios para a região, e a FAB intensificou os voos de patrulha sobre os navios de guerra franceses.

Diante da escalada do conflito, ambos os países mobilizaram seus porta-aviões. A França deslocou para o Atlântico Sul o Clemenceau, seu navio-aeródromo mais moderno, enquanto o Brasil mobilizou o Minas Gerais, a estrela de sua frota.

Buscando evitar uma guerra, o então presidente brasileiro, João Goulart, concedeu uma autorização provisória para que alguns pesqueiros franceses pudessem exercer suas atividades em águas brasileiras.

João Goulart em retrato fotográfico colorido /Crédito - Getty Images

 

Todavia, tamanha foi a revolta popular, que dias depois voltou atrás e cancelou a autorização. O presidente De Gaulle chegou a se manifestar publicamente sobre a atitude, classificando-a como não séria.

Em 1963, depois de quase dois anos de discussões, ambos os países preferiram evitar o mal maior e acabaram retrocedendo. Várias são as razões apontadas para a guerra nunca ter de fato acontecido.

Para a França, que já se encontrava lutando uma longa guerra na Argélia, o preço de mais um conflito seria caro; enquanto, no Brasil, assolado por uma instabilidade política e econômica, começava a tomar forma o movimento que culminaria com os eventos de 31 de março de 1964.


Ricardo Lobato é Sociólogo e Mestre em economia pela UNB, Oficial da Reserva do Exército brasileiro e Consultor-chefe de Política e estratégia da Equibrium — Consultoria, Assessoria e Pesquisa. 

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Aventuras na História

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