Os americanos foram buscar na Europa elementos para compor um passado que não tinham. William Randolf Hearst, que inspirou Cidadão Kane, de Orson Welles, trouxe um monastério medieval inteiro, desmontado na Espanha e reconstruído em Miami, na Flórida
Texto Carlos Bighetti Publicado em 19/12/2012, às 19h38 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Muitos turistas brasileiros que vão para a Flórida procuram o estado americano por causa de um castelo. O castelo de Cinderela, na Disney World. O lugar, como tudo ao redor, não tem nada de original. É falso como uma nota de 3 dólares. Mas no mesmo estado existe um monastério medieval construído no século 12. Ele, sim, é de verdade, ainda que esteja mais de 7 mil km longe de seu terreno original, na Espanha. O que ele faz ali e por que veio de tão longe?
Em 1141, Alfonso 7º, rei de León, fundou o Monastério de Santa María la Real, em Sacramenia, perto de Segóvia, no centro do que hoje é a Espanha. Na época, a península Ibérica reunia vários reinos, cristãos e muçulmanos, que ora brigavam, ora se aliavam. O monastério era uma gentileza à ordem dos cistercienses, fundada poucos anos antes, em 1098, na França. Os monges da ordem tratam o trabalho como um caminho para encontrar Deus. São pródigos em arquitetura - e também na fabricação de vinho.
Outra característica dos cistercienses, além do hábito branco, é a reclusão. Os monges falam pouquíssimo e têm raros contatos com o mundo exterior aos monastérios onde vivem. "Eles buscavam uma vida de contemplação, observação e reclusão", explica o professor Edin Abumansur, da pós-graduação em ciências da religião da PUC-SP. Pois, enquanto os religiosos contemplavam e observavam, o mundo do lado de fora passava por rápidas transformações. O reino da Espanha começou a tomar forma no século 15, com o casamento entre Fernando de Aragão e Isabel de Castela - e com a expulsão dos muçulmanos de Granada em 1492. A Espanha unificada, católica e conservadora, deu paz aos cistercienses durante 700 anos. Até que, em 1833, chegou ao trono outra Isabel, de apenas 3 anos - em um período que dividiu o país. A Espanha acabara de sofrer o trauma da Guerra Napoleônica - o país foi governado por José Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão, entre 1808 e 1814, e entre as forças políticas que emergiram havia uma forte corrente anticlerical. "As associações entre Igreja e Estado haviam sido abandonadas e, no esforço de restauração da monarquia, após o domínio de Napoleão Bonaparte, os liberais progressistas e moderados buscavam toda a riqueza do país, incluindo a das ordens religiosas, da mesma forma que aconteceu na Revolução Francesa", afirma Álvaro Allegrette, professor do curso de história da PUC-SP.
A construção desmontada: na mudança, algumas pedras não puderam ser encaixadas
O primeiro-ministro Juan Álvarez Mendizábal assinou uma série de decretos entre 1835 e 1837 conhecidos como Confiscos Eclesiásticos. Mendizábal desapropriou e estatizou uma grande quantidade de monastérios e igrejas - um deles, o monastério cisterciense Santa María la Real, que virou silo para grãos e abrigo de gado.
Menos de um século depois de seu uso agropecuário, em 1925, o monastério foi vendido para o americano William Randolf Hearst, o magnata das comunicações que inspirou Cidadão Kane, de Orson Welles. "Hearst comprou aos pedaços ou por inteiro palácios, abadias, conventos europeus, desmontando-os e numerando-os tijolo por tijolo, despachando-os através do oceano e reconstruindo-os sobre o monte encantado, em meio a animais selvagens em estado natural", escreveu o filósofo italiano Umberto Eco em Viagem na Irrealidade Cotidiana, um ensaio em que discute a mania americana de criar história com símbolos alheios, falando sobre a Xanadu que Hearst construiu como sua casa, na Califórnia.
Mas o monastério espanhol teve outro destino. E a culpa foi da palha. Uma equipe foi contratada para desmontar os claustros e o refeitório do monastério, além da sala capitular, uma espécie de salão de leitura. Pedra por pedra, as estruturas foram numeradas. No final, havia 11 mil peças de um gigantesco quebra-cabeças em 3D, em caixotes de madeira forrados com palha, que foram despachados para os EUA (a abadia ficou em Sacramenia). Quando o barco se aproximou do porto de Nova York, funcionários do departamento de agricultura americano barraram a encomenda. Temiam que a palha estivesse contaminada com febre aftosa. O carregamento foi para uma quarentena. Nesse meio tempo, as finanças de Hearst degringolaram. Resultado: as pedras passaram 26 anos armazenadas em um galpão, no Brooklyn. Hearst morreu em 1951 sem ver o monastério reerguido.
No ano seguinte, as peças foram a leilão e acabaram arrematadas por Raymond Moss e William Edgemon, que resolveram levar o tesouro para Miami Beach, na Flórida. A reconstrução só acabou em 1964, mas o tempo foi cruel com as pedras espanholas. Algumas perderam a numeração, ninguém foi capaz de encontrar as instruções de reconstrução e a remontagem se transformou em pesadelo: demorou um ano e meio e custou 1,5 milhão de dólares. Até hoje não se sabe a localização correta de algumas peças. Elas simplesmente sobraram. Na Espanha, o mosteiro era católico. Ao viajar da península Ibérica para a península da Flórida, cruzou uma linha importante dentro do cristianismo: nos EUA, tornou-se um templo religioso episcopal, a vertente americana da Igreja Anglicana. "Temos que avisar que casamentos católicos não são permitidos em nossa capela. Mas isso é uma restrição da Igreja Católica, e não da Igreja Episcopal", explica Tania Witten, organizadora de eventos do mosteiro. Personagem da "irrealidade cotidiana" americana, o monastério virou parte da paisagem e, para muita gente, é o edifício mais antigo das Américas (claro, levando em conta o ano de sua construção na Espanha). "Ele não é mais um tesouro medieval", diz o professor Edin Abumansur. "O que fica é um empréstimo de memória."
Saiba mais
Livro
The Chief: The Life of William Randolph Hearst, David Nasaw, Mariner Book, 2001
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