Os Tokugawa impuseram a paz no Japão com mão de ferro. Por ironia, foi durante o longo período sem guerras que surgiu o maior de todos os samurais, Miyamoto Musashi
01/04/2008 00h00 Publicado em 01/04/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Quando o general Tokugawa Ieyasu recebeu do imperador japonês o título de xogum, em 1603, teve início a chamada Era Tokugawa, ou Período Edo, que duraria até 1868. Sob o comando de Ieyasu, a cidade de Edo (atual Tóquio) tornou-se a nova sede do governo do país. Em 1605, Ieyasu abdicou do título de xogum em favor de um de seus filhos, Hidetada, para garantir que um membro do seu clã se tornasse seu sucessor. Na prática, porém, Ieyasu continuou a governar – e com mão de ferro. Antes de morrer, em 1616, ele esmagou os últimos focos de ameaça a seu poder, baniu o cristianismo e restringiu o comércio com outros países.
Ieyasu consolidou a unificação do Japão, mas foi um de seus netos, Iemi- tsu, quem criou as bases para o longo domínio da família Tokugawa. Filho mais velho de Hidetada, Iemitsu foi o terceiro xogum da dinastia Tokugawa e governou o país de 1623 a 1651. Uma das medidas adotadas por ele foi isolar o Japão do resto do mundo. Em 1633, baixou uma lei determinando que nenhum estrangeiro poderia entrar no país e nenhum japonês poderia viajar ao exterior, sob pena de morte. Com isso, Iemitsu procurou afastar qualquer ameaça externa à estabilidade do xogunato. No plano interno, Iemitsu criou em 1635 um draconiano mecanismo de controle dos daimiôs, os senhores feudais. Eles passaram a ser obrigados a morar parte do ano em Edo, sob a vigilância atenta dos Tokugawa. Quando não eram os próprios senhores feudais, quem devia permanecer na capital, praticamente como reféns do xogum, eram a esposa e os filhos. Dessa maneira, os Tokugawa tinham condições de detectar e debelar rapidamente as eventuais tentativas de rebeldia dos daimiôs. Além disso, o sistema era financeiramente dispendioso para os senhores feudais, já que eles precisavam manter duas residências, uma em Edo, outra em sua província. Com tantas despesas, era muito difícil sobrar recursos para um daimiô montar um exército poderoso capaz de sublevar-se contra o xogunato.
Paz na marra
Sem uma expressiva oposição interna ou ameaças do exterior, os Tokugawa puderam governar o Japão com tranqüilidade. A estabilidade do sistema era assegurada também pela divisão rígida da sociedade em quatro classes. No topo da pirâmide estavam os samurais. Abaixo deles, os camponeses, os artesões e os comerciantes. Somente os samurais podiam portar armas, e quem nascesse em outra classe social não poderia nunca aspirar tornar-se um deles.
Sem muito que fazer numa era de prolongada paz, muitos samurais assumiram funções burocráticas no governo. A falta de ações belicosas criou um ambiente favorável para o renascimento cultural. Várias formas de expressão artística floresceram nessa época, como o teatro kabuki, o teatro de bonecos bunraku e a pintura ukiyoe. Os samurais não ficaram imunes a isso e muitos passaram a se dedicar a alguma arte, como uma elevação espiritual. Ao mesmo tempo, não podiam descuidar-se do treinamento de habilidades básicas para um guerreiro, como o manejo de espadas e do arco-e-flecha.
Durante o Período Edo, houve também a sistematização do bushido (“o caminho do guerreiro”), o código de conduta dos samurais. Influenciado por ensinamentos do budismo, do xintoísmo e do confucionismo, era um conjunto de regras sobre como um samurai deveria comportar-se em todos os aspectos da vida, enfatizando valores como o senso de justiça, honra, coragem, compaixão e lealdade. Para viver segundo esses preceitos, o samurai precisava ter sempre em mente a transitoriedade da vida. Em outras palavras, tinha de se acostumar com a idéia da morte.
“Um guerreiro deve pensar na morte o tempo todo, seja durante o dia ou à noite, do primeiro ao último dia do ano”, escreveu Taira Shiguesuke, autor de um manual de formação de jovens samurais, Bushido Shoshinshu, publicado por volta do ano 1700. A idéia da morte devia estar presente no guerreiro para que ele não abandonasse nunca o espírito de combate. “Um guerreiro que carrega duas espadas, mas não leva na alma o espírito de combate, não passa de um camponês ou um comerciante na pele de um samurai”, afirmava Shiguesuke.
O maior guerreiro
Ninguém incorporou melhor esse espírito guerreiro do que Miyamoto Musashi, considerado por muitos como o maior samurai de todos os tempos. Em 1600, aos 16 anos, participou da Batalha de Sekigahara, ao lado do grupo derrotado pelas forças de Tokugawa Ieyasu. Depois da guerra, Musashi levou uma vida errante, perambulando pelo Japão à procura de adversários para medir forças. Mas, diferentemente da maioria dos ronins (samurai sem um senhor a quem servir), Musashi não encarava esses combates como forma de conquistar a fama ou um bom emprego nos palácios. Seu objetivo era simplesmente aperfeiçoar a técnica de esgrima. Como nunca teve um mestre, Musashi aprendeu a manejar a espada sozinho, na prática. E começou cedo. Venceu seu primeiro duelo aos 13 anos, contra um samurai já reconhecido, Arima Kihei. Ao todo, Musashi travou – e venceu – cerca de 60 duelos. O mais célebre foi contra outro espadachim de grande talento, Sasaki Kojiro, em 1612. Nessa luta, Musashi teria usado uma espada improvisada, talhada a partir de um remo do barco que usou para chegar ao local do duelo, a ilhota de Funajima, na região de Kyushu, sul do Japão.
Musashi desenvolveu uma técnica de luta com o uso simultâneo de duas espadas, um estilo que ficou conhecido como nito ichiryu (escola das duas espadas) ou niten ichiryu (escola dos dois céus). Ele utilizava esse recurso somente quando enfrentava mais de um adversário ao mesmo tempo, tirando proveito de sua estatura (mais de 1,80 metro), o que facilitava segurar uma espada em cada mão. No entanto, em seus anos de maturidade, Musashi nunca lutou com uma arma autêntica – preferia usar bokken, espada de madeira, própria para treinamentos. Além de exímio espadachim, Musashi desenvolveu outros talentos. Como artista produziu caligrafias, pinturas e esculturas – algumas preservadas até hoje em museus no Japão.
Muito do que se sabe hoje sobre o grande guerreiro foi difundido por meio da narrativa romanceada do escritor Eiji Yoshikawa, autor do best-seller Musashi, publicado originalmente como um folhetim no Asahi Shimbun, entre 1935 e 1939, e lançado com sucesso também no Brasil. Em quase todos os relatos sobre Musashi, a realidade mistura-se com a ficção, o que contribui para aumentar o mito em torno do samurai. Consta que, com quase 60 anos, sentindo a proximidade do fim, Musashi se isolou numa caverna em Kyushu para escrever Gorin no Sho (O Livro dos Cinco Anéis), uma síntese de seus conhecimentos sobre a técnica de manejo de espadas e sobre estratégia. Musashi finalizou o livro pouco antes de morrer, em 1645, aos 61 anos. A obra que deixou para o mundo, no entanto, ajudaria a manter vivo o espírito de samurai ainda por muito tempo.
Miyamoto Musashi tornou-se o mais célebre samurai do Japão não apenas por sua destreza com espadas, mas também por suas reflexões sobre estratégia, reunidas na obra Gorin no Sho (O Livro dos Cinco Anéis). Nele, Musashi diz que o verdadeiro ofício de um guerreiro é o domínio da estratégia. “Algumas pessoas são consideradas estrategistas, quando, na verdade, são apenas lutadores de espada.”
O próprio Musashi, quando jovem, era apenas um hábil manejador de espadas. Mas já tinha noção intuitiva de estratégia, como demonstrou em 1605, aos 21 anos, quando desafiou para um duelo um respeitado instrutor de esgrima, Yoshioka Seijuro. Musashi derrotou-o usando apenas um bokken (espada de madeira). Humilhado, Seijuro cortou seu topete e renunciou à vida de samurai. Coube ao irmão dele, Denshichiro, desafiar Musashi para salvar a honra dos Yoshioka. Musashi chegou deliberadamente atrasado ao local combinado para o novo duelo, o que irritou Denshichiro e lhe tirou a concentração. Musashi não teve dificuldade para derrotá-lo com um golpe na cabeça, novamente usando um bokken. Os Yoshioka lançaram então um último desafio em nome de Hanshichiro, um menino de seus 11, 12 anos, que seria acompanhado por um séquito de samurais. O plano era armar uma emboscada contra Musashi. Mas ele mudou de tática e, dessa vez, chegou mais cedo ao local combinado, a fim de estudar o terreno. No momento oportuno, surpreendeu os adversários, matou Hanshichiro e fugiu em seguida.
Nessa e em outras lutas, Musashi aplicou algumas estratégias que, anos mais tarde, seriam reunidas de forma consolidada no Gorin no Sho, como a importância do planejamento, de estudar antecipadamente o inimigo, antevendo sua possível reação, de prestar atenção aos menores detalhes, de surpreender o adversário, de escolher o momento certo de atacar, de nunca perder o foco e de usar todas as armas à mão. Três séculos depois, as lições de Musashi atraíram a atenção das melhores escolas de administração de empresas do mundo. As estratégias do guerreiro foram transplantadas para o mundo dos negócios e viraram preceitos para os empresários interessados em vencer as constantes batalhas pela conquista dos mercados.
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