Apesar de sua obra atormentada, o escritor Franz Kafka é, na verdade, um sujeito boa-praça, dotado de ótimo senso de humor. E, quem diria, um adepto dos esportes
Leandro Sarmatz Publicado em 01/02/2006, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Franz Kafka é definitivamente uma figura incomum. Nasceu em Praga, em 1883, cidade que então fazia parte do Império Austro-Húngaro (hoje é a capital da República Checa). Antecipou em seus livros o absurdo de uma época em que uns poucos são capazes de matar milhões. Advogado, trabalhou no Instituto de Seguros Operários Contra Acidentes, onde costumava ser muito dedicado em processos a favor de trabalhadores mutilados. Autor de clássicos como A Metamorfose, O Processo e O Castelo, Kafka personificou o pedaço mais sombrio e – por mais paradoxal que seja – brilhante da literatura modernista. Mas o pior é que quase ficamos sem conhecê-lo. Se não fosse por um amigo chamado Max Brod, a obra do escritor, morto por tuberculose em 1924, nunca teria sido publicada, mas destruída. E, pode ter certeza, nossa imaginação seria bem mais pobre sem suas cruéis, divertidas e sempre incisivas histórias.
História – Se não fosse por seu amigo Max, jamais teríamos conhecido sua obra, uma das mais importantes da literatura. Por que o senhor quis que queimassem seus textos?
Franz Kafka – Por favor, não me trate com tanta cerimônia. Quanto a sua pergunta, puxa, é porque sempre fui um cara perfeccionista. Sabe Gustave Flaubert, o escritor francês autor de Madame Bovary? Pois ele era meu mestre, um cara que ralava muito para chegar à frase perfeita, à palavra exata. Eu costumava ser assim também. Além do mais, deixei uma penca de fragmentos, histórias sem final ou várias versões para o mesmo texto. São os meus “rabiscos”, como eu costumava dizer. Achei que não valia a pena publicar nada do que eu tinha escrito.
Você é um cara tímido?
Digamos que sou meio reservado.
Sua obra mais famosa é, sem dúvida, A Metamorfose: a história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que acorda de uma noite de sonhos intranqüilos metamorfoseado num inseto gigantesco. Como você pensou nisso?
Ah, já me fizeram essa pergunta tantas vezes! Foi mais ou menos assim: num belo dia, tendo voltado de mais um exaustivo período de trabalho, deitei-me na cama com a sensação de estar vivendo a vida de um inseto. Ou seja: fazendo muitas atividades e, no fim das contas, realizando poucas coisas concretas. Além disso, sempre tive uma queda pelas fábulas e histórias fantasiosas.
Você sabia que, no Brasil, muita gente afirma que o inseto no qual Gregor se transformou foi uma barata?
Sério?! Vocês aí no Brasil estão sempre querendo reinventar a roda... Mas acho que entendo o equívoco: em nenhum momento eu defino o tipo de inseto no qual o pobre Gregor se transformou. Mas fique sabendo que, em alemão, a palavra que uso é Ungeziefer, algo como “besta”. A mesma palavra terrível, aliás, que os nazistas usariam em seus relatórios na hora de contabilizar o número de mortos em seus campos de concentração.
A propósito: você morreu em 1924, mas vários de seus familiares pereceram em campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra. É verdade que você havia previsto tudo isso?
Dizer que eu “previ” é um pouco de exagero. A coisa estava bem complicada desde 1918, após o fim da guerra que vocês chamam de “Primeira Guerra”. Óbvio que os alemães não iriam deixar barata toda a humilhação posterior àquele conflito. Eu apenas pensei em mundos terríveis, opressivos, nas minhas histórias. O triste é que a vida real ficou bem parecida pouco tempo depois.
E o que você pensa sobre os alemães?
Tenho uma relação especial com eles. Tive grandes amigos em Berlim, mas o fato é que, para um alemão comum, devo parecer um tipo bastante estranho: judeu, checo e, ainda por cima, um checo que escreve em alemão. Isso, contudo, me deixa numa posição especial, pois posso observar várias culturas, participar delas e, no fim das contas, deixá-las quando eu bem entender.
Conhecer Israel nunca esteve entre os seus planos?
Durante muitos séculos, a pátria dos judeus foi a história. Isso não é mais verdade: os judeus, como todos os outros povos, desejaram encontrar um país. Quanto a mim, meu caro, até cheguei a estudar hebraico – você não sabe o trampo que é decorar todas aquelas letrinhas estranhas e incrivelmente belas –, mas tive outros compromissos e desisti da viagem. Além disso, a situação lá sempre foi dureza!
Como é sua relação com seus pais?
Meu pai sempre foi um osso duro de roer. Veio do nada e se transformou num próspero comerciante. Um cara durão, sem meias-palavras, o dono da verdade. A gente tinha nossas diferenças – quem leu a Carta ao Pai irá me entender. Quanto a mamãe, ah, sempre fui tão parecido com ela: sonhador, meio arredio, amante das artes...
Você nunca se casou, embora tenha noivado duas vezes. Você gosta, como se dizia nas marchinhas de carnaval, de rosetar, de se divertir bastante por aí?
E quem não gosta, meu caro?
Você sempre foi um cara magrinho, mirrado mesmo, e morreu de tuberculose. Nunca lhe ocorreu praticar esportes?
Ui, nessa vocês se superaram! E quem disse que eu era esse cara paradão que muita gente ainda hoje pensa que eu era? Podia jurar que quando o Milan Kundera, meu compatriota e colega de profissão, autor de A Insustentável Leveza do Ser, escreveu um belo texto sobre minha disposição para os esportes, em especial a natação, ele tivesse terminado com essas dúvidas. Aliás, gosto tanto de estar na água que, no primeiro dia da Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha declarou guerra à França, eu fui nadar. Até anotei isso no meu diário, vejam vocês...
*Leandro Sarmatz é jornalista e mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É autor da peça Mães & Sogras e de alguns poemas que raramente são publicados em revistas especializadas. Obcecado por Kafka desde os 14 anos, tem uma siamesa chamada Felice (em homenagem à noiva do escritor).
Livros
Kafka, Max Brod, Emecé, 2000 - Memórias do melhor amigo de Kafka. O escritor aparece quase como um santo, mas a obra é um bom testemunho sobre seu tempo. Em espanhol.
Kafka, Erich Heller, Cultrix, 1990 - Talvez a melhor chave para decifrar a obra do autor, analisa seus romances, contos e cartas.
Conversas com Kafka, Gustav Janouch, Nova Fronteira, 1983 - Janouch tinha 17 anos quando, em 1920, conheceu o escritor. Falaram à beça sobre tudo: literatura, guerra, judaísmo, mulheres. E o moleque deixou o papo registrado para a posteridade.
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