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Era uma vez...A capa ilustrada

Do primeiro grande sucesso editorial infantil, os livros da britânica Beatrix Potter, ao megafenômeno de Harry Potter, passaram-se mais de 100 anos. Trajetória que pode ser contada pelas capas das obras para crianças

Bianca Nunes Publicado em 01/08/2008, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

Helen Beatrix Potter tinha uma alma solitária. Nascida na Inglaterra, em 1866, filha mais velha de um casal rico, foi criada sob rígidos costumes. Tornou-se naturalista e, a partir do estudo de animais, passou a desenhá-los. Criou ilustrações que misturavam fantasia e história natural e, em 1901, lançou Pedro, o Coelho, em edição particular. Um editor percebeu que o livro tinha futuro e o colocou no mercado.

Harry Potter é um garoto solitário. Perdeu os pais bem pequeno, mortos por um inimigo, Lord Voldemort. Foi criado por parentes insensíveis e, aos 11, entrou para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde desenvolveu poderes mágicos.

Mais de um século separam os dois Potter. Em comum, além do óbvio sobrenome, ambos são protagonistas de estrondosos sucessos. Beatrix vendeu, até hoje, 45 milhões de exemplares e virou o filme Miss Potter, em 2006. A série de sete livros de Harry, criação da britânica J.K. Rowling, ultrapassou os 400 milhões de livros vendidos. As versões em cinema são igualmente bem-sucedidas.

Boa parte do sucesso dos Potter deve-se às ilustrações das capas de seus livros, que cumpriram bem o papel de seduzir o leitor. Fascinado não só por esses, mas por uma série de outras ilustrações de livros infantis, o historiador de arte Alan Powers, professor de Arquitetura da Universidade de Greenwich, escreveu Era uma Vez uma Capa. No livro, analisa a trajetória das capas de livros de crianças e seu longo percurso até chegar ao que hoje vemos nas vitrines das livrarias: uma variedade enorme de cores, formatos, estampas e desenhos.

No princípio, coisa de camelô

A história das capas dos livros infantis começa no século 16, quando comerciantes ambulantes passaram a produzir livros impressos em uma página dobrada em 12 ou 16 partes. Chamados de chapbooks, esses títulos custavam pouco e, além do conteúdo, baseado em contos folclóricos, não tinham nenhum atrativo especial para crianças. Antes disso, os livros eram publicados com uma capa provisória, “na expectativa de que os compradores a substituíssem por uma encadernação permanente de couro, o material mais maleável disponível na época”, conta Powers. Tudo mudou em 1744, quando o britânico John Newbery teve a brilhante idéia de ilustrar um desses livrinhos. A partir daí, a capa ilustrada permaneceu – e é até hoje – associada ao universo infantil.

Newbery também criou a primeira loja dedicada a livros infantis da Inglaterra. Além dos chapbooks, vendia novas obras e criou uma estratégia que deu certo: colocava brinquedos e livros juntos, num “2 em 1” que saía mais barato para o cliente. Começou então uma competição entre os editores concorrentes pela invenção de modos novos de apresentar os livros.

Em 1820, a encadernação das obras passou a ser feita com tecido de cortina, decorado mais facilmente e produzido em maior número. As estampas traziam ouro, tinta colorida, bronze ou zinco. Trinta anos mais tarde, outro tipo de livro ganhou destaque: com número de páginas padrão, formato maior e preço baixo, eram chamados de livros-brinquedos, pois suas capas com cores fortes e vibrantes atraíam as crianças como faziam, por exemplo, os jogos de tabuleiro. O sucesso foi enorme e edições de 100 mil exemplares saíam como pão quente.

Com o tempo, a obra ficou mais sofisticada. De livros-brinquedos eles se tornaram livros-presentes e viraram artigos de luxo. A partir daí, o universo da literatura infantil passou a ser valorizado. Foram publicados livros como Contos de Fadas para Crianças, dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen, e Alice no País das Maravilhas, do professor de matemática Charles Lutwidge Dodgson, que adotou o pseudônimo de Lewis Carroll.

O século 20 trouxe mudanças na produção dos livros infantis. À medida que a impressão se tornava menos custosa, até os títulos baratos ganharam capas coloridas. Na década de 1920, outra parte do livro ganhou destaque: a sobrecapa (cobertura de papel que envolve a capa), que protegia a obra e dava uma idéia do conteúdo.

Um modelo americano

Com a Segunda Guerra Mundial, o mercado europeu sofreu escassez de papel e dificuldade de impressão. No entanto, houve nessa época um aumento do número de leitores – apesar da pouca qualidade das obras. Os Estados Unidos, que só se envolveram no conflito em 1941, passaram na frente e lideraram a vanguarda de produções. Eles criaram prêmios para as melhores publicações infantis, o que estimulou o aperfeiçoamento de profissionais. Imigrantes levavam da Europa suas experiências e compunham uma mistura heterogênea bem criativa. As ilustrações, muitas vezes, lembravam o colorido das roupas de seus países de origem.

A década de 1940 inaugurou uma moda que ainda hoje persiste, com livros que dão vida a meios de transporte, como locomotivas e outros grandes veículos. Acabada a guerra, houve um boom editorial e tecnológico. Criou-se a técnica da autolitografia: as cores passaram a ser separadas com boa qualidade de impressão e o preço caiu. Os Estados Unidos continuaram por décadas dominando o mercado.

O movimento hippie e a contracultura dos anos 60 e 70 inspiraram: as capas tinham muitas cores e vários formatos. Elementos supérfluos foram eliminados. A nova geração de autores compunha histórias de heróis com dúvidas existenciais. É dessa época A Fantástica Fábrica de Chocolate, de Roald Dahl. A estrutura econômica do mercado também mudou. As editoras podiam arriscar em livros de melhor qualidade e com maior tiragem, mesmo que com pequena margem de lucro a curto prazo.

No fim dos anos 80, o muro de Berlim caiu e o mundo passou a ter características globais. Os computadores mudaram a forma de se trabalhar com edição e os ilustradores passaram a ser mais valorizados. A impressão em cores tornou-se barata e alguns títulos começaram a ser vendidos junto com disquetes e vídeos. Nessa época, um editor ficou famoso. Sebastian Walker, que fundara a editora especializada em literatura infantil Walker Books, em 1978, e lucrara muito com uma série de livros para bebês, passou a trabalhar com os melhores autores, artistas e ilustradores. A partir de sua experiência bem-sucedida (e muito lucrativa), a publicação de títulos infantis começou a ser vista como um ramo promissor.

Tudo isso abriu caminho para o peso e o sucesso que alcançou a publicação infantil na década de 1990. O responsável por isso, principalmente, é Harry Potter, herói da série que aproximou adultos e crianças. Apesar de causar impacto inédito na história dos livros, a autora J.K. Rowling não foi pioneira nos enredos fantásticos: 30 anos antes, Diana Wynne Jones já misturava imaginário, mitologia e humor em sua obra, mas não teve tanta fama. A época era outra.

Alan Powers mostra que a produção editorial infantil, principalmente das capas, segue um fluxo: o que está na moda em um período inspira versões até esgotar a idéia original. É hora então de tentar algo novo. A referência histórica, porém, permanece. São essas as capas que ficam na memória de toda uma geração. •

 

Moda infantil

A evolução das capas dos livros nos últimos dois séculos

João Felpudo - 1950

Em 1844, o médico Heinrich Hoffmann saiu de casa em busca de um livro para seu filho de 3 anos. Não encontrando nada que o divertisse, resolveu ele mesmo escrever e ilustrar versos para dar à criança como presente de Natal.

The History of Whittington and His Cat (“A história de Whittington e seu gato”) - 1822

As ilustrações começam a se firmar como atrativos infantis. A idéia de mostrar, na capa da obra, a parte traseira da carroça como se ela entrasse no miolo tem a intenção de despertar a sensação de entrar no livro.

O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa - 1950

O livro de C.S. Lewis, que faz parte da série Crônicas de Nárnia, tem como propósito velado o ensinamento religioso. A sobrecapa dessa primeira edição mostra cores sóbrias, típicas do gosto inglês no pós-guerra.

Grimms Fairy Tales and Household Stories (“Lendas e histórias familiares dos Grimm”) - 1890

Os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm registraram histórias folclóricas. As publicações só ganharam ilustrações na tradução para o inglês, a partir de 1823.

Um Urso Chamado Paddington - 1958

O urso da série de nove livros de Michael Bond tinha edições de capa dura ilustradas com um traço solto, sem qulquer preocupação com o marketing – oposta à imagem de Paddington após ter se tornado série de TV inglesa, em 1975.

Alice no País das Maravilhas - 1907

O inglês Lewis Carroll produziu um texto que mistura realidade e fantasia, cuja protagonista é a garota Alice. A capa é uma típica edição de livro-presente com encadernação gravada e ilustração na sobrecapa.

A Fantástica Fábrica de Chocolate - 1964

A primeira edição da obra do britânico Roald Dahl tinha uma sobrecapa experimental com referências da art nouveau da década de 1960. As edições seguintes, tiradas depois que o livro ficou famoso, já traziam os personagens da saga ilustrados na capa.

A Viagem de Babar - 1936

Os elefantes do francês Jean de Brunhoff surgiram quando o autor estava doente, com tuberculose, para ele poder manter contato com o filho. Babar lançou uma moda de livros grandes e com charmosos textos manuscritos.

Harry Potter - 1997

O primeiro livro da britânica J.K. Rowling deu o pontapé para o sucesso da série, em 1997. A capa com ilustração menos infantilizada favorecia os leitores adultos, que não sentiam tanta vergonha ao comprar um livro infantil.

 

Saiba mais

A OBRA

Era uma Vez uma Capa, Alan Powers, CosacNaify, 2008 R$ 65 144 págs.

 

Acervo

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