Em levantamento inédito, a Agência Pública analisou o índice de vendas dos quatro remédios presentes no suposto tratamento
Com o número de mortos e infectados pelo Coronavírus crescendo a cada dia, os brasileiros começaram a procurar por novas formas de evitar a doença e, assim, surgiu o polêmico ‘kit covid’. Composto por quatro medicamentos distintos, o método promete um suposto ‘tratamento preventivo’, mesmo sem qualquer comprovação científica.
Agora, após meses de pandemia, a Agência Pública realizou um levantamento exclusivo, a fim de verificar o consumo de tais fármacos no Brasil. E, segundo os resultados da pesquisa, as farmácias brasileiras venderam mais de 52 milhões de comprimidos dos quatro medicamentos presentes no ‘kit covid’ no período analisado pela apuração.
No total, pessoas espalhadas por todo o país compraram mais de 6,6 milhões de frascos e caixas de hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e nitazoxanida entre março de 2020 e o mesmo mês de 2021. Tais números, contudo, representam apenas as vendas de farmácias privadas, então não englobam as distribuições em hospitais e no SUS.
Contando com uma grande divulgação do presidente Jair Bolsonaro, que afirmou ter feito uso do medicamento, a hidroxicloroquina foi o remédio mais vendido no período analisado. Foram 1,3 milhão de caixas, mais de 32 milhões de comprimidos.
Mesmo sendo bastante consumido, o fármaco entrou para a lista de rótulos sujeitos a controle especial, assim como a cloroquina. Isso porque, segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável pela decisão, "não existem estudos conclusivos sobre o uso desses fármacos para o tratamento da covid-19".
Logo depois da hidroxicloroquina, vem a azitromicina. O antibiótico teve mais de 13 milhões de comprimidos vendidos, cerca de 3 milhões de caixas. Nesse sentido, de acordo com a reportagem, eram 711 mil comprimidos vendidos por mês em 2019, mas, durante a pandemia, o índice subiu para 1 milhão de doses compradas mensalmente.
Segundo a Pública, ambas a hidroxicloroquina e a azitromicina tiveram seus picos de venda em março de 2021, quando o número de mortes por covid-19 disparou no país. Enquanto isso, a ivermectina e a nitazoxanida, que são vermífugos, apenas entraram para o grupo de controle especial em abril e em julho, respectivamente.
Os dois rótulos, contudo, foram retirados da classificação em setembro de 2020. Durante esse período, os vermífugos apresentaram picos de vendas em agosto, para a ivermectina, e em julho, no caso da nitazoxanida.
Ainda de acordo com a reportagem, por mais que os medicamentos sejam amplamente vendidos em todo o país, o estado de Goiás foi onde mais caixas dos quatro remédios foram comprados em comparação com sua população.
Ao mesmo tempo, os moradores de São Paulo foram os que mais compraram os remédios do ‘kit covid’ em números absolutos. Representando mais de um quinto do total vendido no país, foram 1,5 milhão de caixas dos quatro rótulos comercializadas.
Em protocolo publicado em março de 2021, contudo, a OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou que a hidroxicloroquina não é indicada para casos de Covid-19, enquanto a ivermectina é desaconselhada, exceto em pesquisas clínicas.
Diretores da Anvisa, por sua vez, defendem que não existem remédios que previnam ou tratem o Coronavírus precocemente, como o kit covid promete. Da mesma forma, a Sociedade Brasileira de Infectologia diz não recomendar o uso dos rótulos em casos de Covid-19, enquanto a Associação Médica Brasileira garante que os quatro fármacos não têm eficácia comprovada e, assim, deveriam ser retirados do tratamento da doença.
Ao contrário dos outros órgãos, todavia, o Conselho Federal de Medicina afirmou não condenar nem apoiar o uso dos remédios em tratamentos precoces contra a Covid-19, defendendo que os médicos podem sugerir o melhor caminho para seus pacientes.
Acontece que, junto com o alto índice de vendas dos medicamentos, a Anvisa também começou a receber mais notificações sobre os efeitos adversos dos fármacos. No total, desde abril de 2020, segundo a Agência Pública, foram 456 denúncias.
Tal quantidade é preocupante porque representa um número dez vezes maior do que o mesmo período no ano anterior, entre abril de 2019 a abril de 2020. De todas as notificações feitas durante a pandemia, inclusive, 173 foram graves e, entre os sintomas mais comuns, estão problemas cardiovasculares (como mudanças no ritmo dos batimentos), dano hepático, diarreia e náuseas.
Questionada pela Agência Pública, por fim, a Anvisa afirmou que "não é possível emitir considerações sobre nenhum dado ou informação específica" sobre os dados de compra e venda dos fármacos analisados pela reportagem exclusiva.