Em entrevista à AH a historiadora Mary del Priore revela as heranças patriarcas que remetem a um fenômeno transcultural
Victória Gearini Publicado em 06/10/2020, às 19h39
Nas últimas décadas o movimento feminista cada vez mais vem ganhando espaço na mídia e em pautas políticas. Historicamente atrelado a luta de classe, raça e gênero, o movimento reivindica por equidade entre homens e mulheres, a fim de, romper com paradigmas sociais intrínsecos na sociedade machista e patriarcal.
Embora a sociedade caminhe para mudanças estruturais, segundo a historiadora Mary del Priore a “violência contra a mulher é um fenômeno transcultural”, presente em todas as culturas ao longo dos séculos. Para a especialista, a sociedade atual herdou três formas de patriarcalismo, que remetem a mais de 500 anos de conduta.
“Nós herdamos três formas de patriarcalismo: o que veio do Ocidente cristão, com sua percepção da mulher como um ser pecador, filha de Eva, por culpa de quem fomos expulsos do paraíso, obrigadas a obedecer por sermos seres inferiores física e mentalmente; o africano, onde a poligamia, o tabu da esterilidade, a infibulação e a excisão do clitóris são formas de controle sobre as mulheres e a dos povos originários, em estágio neolítico, com divisão de tarefas muito definidas — mulheres na taba, homens na caça e na guerra”, disse Mary del Priore.
Sobreviventes e guerreiras
Na obra Sobreviventes e Guerreiras, recém lançada pela Editora Planeta, Mary del Priore reconstitui cenários em que as mulheres estavam inseridas, a partir das mudanças na vida privada e as trajetórias de ex-escravas, a fim de enxergar a construção do território brasileiro por outras perspectivas.
“Historiadores trabalham com e sobre documentos. É da pesquisa histórica que nasce a história que fazemos. Não escolhemos um personagem. Eles que emergem dos arquivos e nos convidam a estuda-los. A minha melhor inspiração vem sempre da pesquisa”, explica Mary del Priore.
Para escrever a obra, a historiadora utilizou publicações e teses mais recentes que permeiam o tema principal de seu livro. Autora da biografia de dona Maria I e da imperatriz Leopoldina, Mary del Priore afirma que a obra Sobreviventes e Guerreiras traça um caminho inverso as suas outras obras.
“As biografias são como janelas que se abrem. A gente foca num personagem importante, mas descortina um cenário de fatos e mudanças ao fundo. O livro atual, faz o caminho inverso: no cenário histórico, busca personagens anônimas capazes de contar suas histórias e mudar nossa percepção do passado”, disse a historiadora.
Em Sobreviventes e Guerreiras é possível encontrar testemunhos de mulheres negras, e escritos de abolicionistas e republicanos sobre a participação feminina na luta pelo fim da escravidão e do Império. Por meio de exemplos reais, esta obra revela, ainda, como a música foi um elevador social para muitas cantoras de rádio da época e desmitifica a ideia de mulher frágil.
“A submissão não é imposta às mulheres sem que elas reajam ou lutem para ficar de pé e revelo isso através de protagonistas das duas ondas feministas que vão atingir o Brasil: na primeira e na segunda metade do século 20”, afirma Mary del Priore.
Cinco séculos de patriarcado
Ao longo de 500 anos a sociedade brasileira herdou três formas de patriarcalismo que até hoje influenciam parâmetros sociais. No final do século 18, 42% da população brasileira era composta por pessoas miscigenadas, ou seja, naquele momento a sociedade não era composta somente por negros ou brancos.
Já no início do século 19, há documentos que comprovam que a segunda classe de pessoas mais ricas, em Minas Gerais, era de escravos forras. Segundo Mary del Priore, mulheres negras que eram ricas, pediam o divórcio para que seus maridos não ururpassem seus bens.
“Essas mulheres foram mães de intelectuais negros e mulatos que vão brilhar durante o Império: Viscondes como o de Inhomirim ou Pedra Branca, os Rebouças, barões como o de Cotegipe e Guaraciaba são filhos e netos de escravas ou ex-escravas que graças à educação subiram ao topo da sociedade”, revelou a historiadora.
Com o passar do tempo, desde 1500 até os dias de hoje, muita coisa mudou na sociedade. A pílula anticoncepcional foi o início da transformação, pois “deu total liberdade à mulher de conhecer seu corpo e não ser apenas — como no século 19 — uma máquina de fazer filhos”, como explica Mary del Priore.
As redes sociais atreladas ao aparato judicial tornaram as denúncias de violência contra as mulheres mais acessíveis, embora ainda haja muitos homens relutantes as mudanças do sistema patriarcal que reforça estereótipos machistas e legitima a opressão aos corpos femininos.
“Numa sociedade patriarcal o homem é obrigado a defender sua honra e seu papel de macho a todo custo. Ele é obrigado a ser viril, bem sucedido, não chorar e não mostrar sentimentos. No passado, adúlteras podiam ser mortas, sem que seus companheiros fossem punidos. A legislação defendia quem lavava a honra em sangue. O mais comum era elas serem punidas com o envio para conventos onde ficavam trancafiadas”, ressalta a especialista.
No entanto, com o letramento, a participação da vida pública, reivindicação pelo voto, o trabalho fora de casa e a crescente pauta sobre a pílula, houve um impusionalmente no movimento feminista. “Essas vozes demonstram que existe, desde sempre resistência ao machismo e ao patriarcalismo”, afirma Mary del Priore.
+AH: Mary Del Priore: A vida íntima de Maria I Portugal e de Leopoldina
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