A ordem do papa Francisco fundou meio Brasil - e foi proibida por décadas
Fernanda Castro Publicado em 01/03/2017, às 06h02 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35
A situação é assustadora. Um europeu baixinho, com seus 30 anos, está detido em uma aldeia em Iperoig (atual Ubatuba, no litoral norte de São Paulo), cercado de índios tamoios por todos os lados. O ano é 1563 e o padre José de Anchieta aguarda há meses sua libertação, desde que se ofereceu como refém, enquanto outro jesuíta, Manuel da Nóbrega, partia para São Vicente com dupla missão: negociar o fim de um dos maiores levantes indígenas contra os portugueses no Brasil e salvar o amigo. A revolta ficou conhecida como Confederação dos Tamoios, aliança de tamoios com tupinambás, liderada pelo lendário guerreiro Cunhambebe. Reuniu 2 mil índios para matar e expulsar do litoral os estrangeiros, que teriam trazido trabalhos forçados e doenças para suas terras. Após cinco meses de discussões, Nóbrega conseguiu fechar o primeiro tratado de paz das Américas, chamado de "A Paz de Iperoig".
Conversa com os índios
O padre Manuel da Nóbrega comandou os primeiros jesuítas a chegarem ao Brasil. Desembarcaram na Bahia, em 1549, na expedição de Tomé de Souza, enviado para ser o governador-geral da colônia. Passados quase 470 anos, deve-se hoje aos jesuítas a abertura dos primeiros colégios no Brasil (o primeiro deles em Salvador), a valorização do hábito do estudo e grande parte do registro conhecido da cultura indígena. Sem falar na contribuição literária do padre Antônio Vieira (1608-1697), com seus sermões, obra obrigatória do Barroco nacional. Por outro lado, os jesuítas não foram só professores e poetas, mas soldados, empresários e políticos. Defenderam os interesses da coroa e da Igreja, pilotaram empreendimentos comerciais e usaram a mão-de-obra indígena para apoiar a economia de Portugal.
Anchieta chegou em 1553, na terceira excursão destinada a converter ao catolicismo os povos das novas terras. Era um jovem idealista, de 19 anos, e recebeu de Nóbrega a incumbência de aprender a língua dos índios. No ano seguinte, em 1554, rezou "numa paupérrima e estreitíssima casinha", como descreveu em carta, a missa de fundação de um colégio na vila de Piratininga, origem da cidade de São Paulo. Estava ao lado do cacique guaianá Tibiriçá, maior aliado nativo dos jesuítas, que mandou transferir as ocas e a gente de sua tribo para o entorno do colégio, a fim de garantir sua proteção. Em 1562, veio de fato um grande ataque indígena à vila. O cacique hasteou a bandeira colorida dos guaianazes, amarrada a um pedaço de pau, e, ao lado dos jesuítas, lutou e derrotou os índios tupis e carijós.
Essa capacidade de interagir com os habitantes das colônias se revelou um grande trunfo político para os jesuítas. No Brasil, traduziu-se, por exemplo, na capacidade de recrutar e administrar trabalhadores em meio à população nativa. Em aliança com a coroa, os padres chegaram a ter, sob sua influência, cerca de 80 mil índios aldeados, no século 17.
A posição da Companhia de Jesus no que se refere à escravidão ainda hoje gera polêmica. A ordem era contra a exploração dos índios pelos colonos e bandeirantes, pois argumentava que os nativos tinham alma e podiam ser convertidos à fé católica. De acordo com Jonathan Wright, autor de Os Jesuítas: Missões, Mitos e Histórias, para defender as populações indígenas da escravidão, os jesuítas discursavam contra a prática durante os sermões e eram capazes até de armar as tribos.
O professor de Literatura da Universidade de São Paulo João Adolfo Hansen, em Antonio Vieira Cartas do Brasil, afirma que o padre escreveu várias cartas a autoridades coloniais, entre 1682 e 1697, opondo-se à escravização de "aldeados" e legitimando a dos índios de corda. Ou seja, daqueles cativos de tribos inimigas que aguardavam para ser comidos. Mas os padres, na opinião do professor de História da USP Carlos Alberto Zeron, devem ser analisados como homens de seu tempo, que consideravam aceitável a escravidão de não-católicos. "Eles não foram contra a escravidão, inclusive usaram e abusaram dela." Segundo ele, índios serviram de mão-de-obra para abrir estradas, como carregadores ou na defesa militar de conquistas.
Poeta e carrasco
Pragmáticos, os integrantes da ordem justificavam o uso da força em nome de suas convicções. Anchieta criou o célebre Poema à Virgem, riscado originalmente nas areias de Iperoig, enquanto sofria a angústia da espera, refém dos tamoios. Mas esse poeta também escreveu, em seus textos doutrinários, que nada convence melhor que a espada e a vara de ferro. Ele é acusado por algumas fontes de ter ajudado, com as próprias mãos, no enforcamento de um prisioneiro condenado à morte por heresia pelo governador-geral Mem de Sá, em 1567. O episódio, embora contestado pela Igreja, emperrou seu reconhecimento como santo, que levou 34 anos entre sua beatificação em 1980 e a canonização em 2014.
Teria ocorrido na época em que estavam sendo expulsos do Brasil os últimos franceses derrotados na tentativa de fundar uma colônia na Guanabara, a França Antártica. O réu executado seria um pastor huguenote deixado para trás, Jacques le Balleur. No momento da execução, revelando-se inábil o carrasco, foi auxiliado pelo padre José de Anchieta, que julgara haver convertido o calvinista e temia que a demora da execução o fizesse voltar atrás, diz o artigo A França Antártica e a Confissão de Fé da Guanabara, do historiador Alderi de Souza Matos, publicado no site do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Mas, para o padre jesuíta Hélio Abranches Viotti, na obra Anchieta, o Apóstolo do Brasil, o incidente se baseia em textos apócrifos e não procede.
Os jesuítas lutaram contra os franceses, no litoral do Rio, arregimentando reforços tupiniquins e guaianazes. Articularam alianças e rezaram missas para levantar o moral das tropas indígenas aliadas. O enfrentamento com as forças do aventureiro Nicolas Durand de Villegagnon (apoiadas por tamoios e tupinambás) demorou 11 anos: de 1555 a 1567. Para fortalecer a presença portuguesa na Guanabara, Anchieta foi enviado de novo para o front. Nóbrega mandou que ajudasse Estácio de Sá, sobrinho do governador-geral, com quem fundaria, então, a cidade do Rio de Janeiro, em 1565.
Como surgiu
Converter infiéis era o grande objetivo da Companhia de Jesus ao ser criada, em 1537, por um grupo de seis estudantes (um português e cinco espanhóis). Era liderada por Inácio de Loyola, ex-soldado basco que abandonou a vida de arruaças, enquanto convalescia do ferimento feito por um tiro de canhão. Três anos depois de fundada, a ordem foi oficializada pelo papa. Em 1556, contava mil integrantes, e, em 1626, mais de 15 mil. A meta dos primeiros jesuítas era conquistar Jerusalém, mas o mar Mediterrâneo estava dominado pelo sultão otomano Suleiman, o Magnífico, e a saída foi desviar a rota e ir converter reformados (protestantes) e nativos em novas terras. A Companhia de Jesus acumulou poder graças às boas relações com a Coroa e ao controle da mão-de-obra nativa. No Concílio de Trento, realizado entre 1545 a 1563 e que teve a Reforma Católica (reação à Reforma Protestante) no eixo dos debates, fez valer suas teses, como a condenação da interferência de monarcas em assuntos da Igreja, embora os jesuítas influenciassem os governos, como conselheiros dos reis. Antônio Vieira foi confidente de dom João IV (rei de Portugal de 1640 a 1656) e, como seu embaixador, foi à Holanda, em 1646, para negociar a devolução de Pernambuco, ocupado de 1630 a 1654.
Nas andanças dos jesuítas pelo mundo, a estranheza entre catequizador e catequizado era inevitável. De um lado, índios canibais politeístas que sabiam tudo de plantas, ou chineses de aspecto exótico e conhecimentos fantásticos de astrologia e matemática. Do outro, europeus barbudos e suados, completamente vestidos independentemente do clima. Os missionários foram a Índia, China, Japão, Etiópia, Canadá, Indonésia, entre outros países. As diferenças culturais provocavam confusões óbvias. Imagine que mau agouro, para um chinês do século 16, acostumado a ver ladrões serem punidos com a crucificação, conviver com um homem que levava sempre uma cruz no pescoço.
Por outro lado, essa proximidade com as tribos permitiu documentar as culturas. Anchieta escreveu o primeiro dicionário português-tupi, sem o qual talvez não tivéssemos registro da língua. Os padres também melhoraram os mapas da época, porque costumavam detalhar em cartas os lugares por onde passavam. Por exemplo, encontraram uma rota terrestre entre Índia e China e descobriram que Califórnia e Coréia não eram ilhas.
Tantas atividades, contudo, exigiam muitos recursos. Jonathan Wright conta que a ordem "procurou financiar o evangelismo através de uma série fenomenal de instituições comerciais: atividades bancárias, mineração, atividades imobiliárias e envolvimento no comércio de especiarias e seda". Essa rede permitiu manter colégios gratuitos, freqüentados por nobres e plebeus. Ao serem expulsos do Brasil, em 1760, os jesuítas tinham 670 colégios (Minas Gerais, Amazonas, Rio de Janeiro, São Paulo etc.). No começo do século 18, a Companhia de Jesus era tão odiada quanto amada. As missões da China, Índia e Canadá estavam enfraquecidas e os padres, envolvidos em boatos de má conduta e corrupção. Sem falar nas disputas teológicas, como a querela sobre o livre-arbítrio: para os dominicanos, a salvação divina do indivíduo era caso de predestinação, enquanto os inacianos acreditavam que era conseqüência de seus bons e maus atos. Com a morte de dom João IV, a ordem perdeu muitos de seus privilégios e teve de enfrentar os ventos do Iluminismo, que valorizava o pensamento racional e não-teológico.
A queda e o retorno
Com dom José (1714-1777), o comando de Portugal passou, na prática, para Sebastião José de Carvalho e Mello, o marquês de Pombal. Ele desencadeou ampla reforma no país e anulou os poderes legais dos jesuítas nas aldeias indígenas. Em 1759, conseguiu expulsá-los de todos os domínios portugueses (inclusive das colônias, ou seja, do Brasil), ordem que se estenderia depois a outros países da Europa. A situação ficou insustentável e o papa Clemente V suprimiu a Companhia em 1773.
Na época, reunia 24 mil membros, mais que os 21 mil atuais. Reabilitada em 1814, a ordem aguardou 40 anos para renascer. Hoje eles definitivamente vivem um grande momento, após pela primeira vez um jesuíta, Francisco I, ter se tornado papa.
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