Antes de chegar ao poder pelas vias legais, Hitler tentou derrubar o governo da época. Preso, fez da derrota o trampolim para se popularizar
Marcus Lopes Publicado em 26/11/2023, às 09h00
Por volta das 10 horas de 8 de novembro de 1923, uma manhã gelada e cinzenta em Munique, na Alemanha, Adolf Hitler, que normalmente acordava tarde, se levantou da cama com uma terrível dor de cabeça. Para piorar, o dente que o incomodava há algum tempo também dava sinais de forte desconforto, mas não haveria tempo para ir ao consultório do dentista, uma providência para resolução da dor que o líder nazista, então com 34 anos, vinha adiando há algum tempo.
O quarto alugado em um apartamento na Thierschstrasse, número 41, era pequeno e bastante espartano, com poucos móveis, uma cama e uma janela. Após se vestir, Hitler correu para a sede do Völkischer Beobachter, o jornal do Partido Nacional-Socialista, do qual já era presidente. Apesar do nome em sua representação, a legenda do periódico tinha fortes tendências antissemitas e de extrema-direita, marcas registradas dos seus integrantes e adeptos da ideologia nazista.
A sede da publicação ficava bem ao norte do centro medieval de Munique, a alguns quarteirões de um dos boulevards mais movimentados da capital da Baviera. No local, o presidente do partido deu algumas instruções aos companheiros, que deveriam estar às 19 horas, armados com suas pistolas, na Bürger Bräu Keller, famosa cervejaria localizada a cerca de meio quilômetro da região central.
Na época, esses estabelecimentos eram muito populares para realização de reuniões políticas, sempre regadas com cerveja, comida e uma atmosfera animada. Como registrou um jornal da Catalunha na época, “na Baviera não existe política sem cerveja”.
“Chegou a hora de agir”, disse Hitler aos subordinados, naquele fim de manhã de novembro. “Vocês sabem o que isso significa”, completou. Significava que, dali a poucas horas, ele e seus seguidores, incluindo uma milícia fortemente armada, tentariam dar um golpe de Estado para derrubar o governo alemão e assumirem o poder. O episódio, que ficaria conhecido como “putsch (golpe) da cervejaria” ou “putsch de Munique”, se revelaria um fracasso do ponto de vista prático, mas serviria para alavancar a popularidade e a carreira de Hitler, até então um militante pouco conhecido inclusive dentro do território alemão.
“Mesmo derrotado, o putsch serviria mais tarde como trampolim para popularizar Hitler e fortalecer o Partido Nacional-Socialista”, explica o historiador Wesley Espinosa Santana, professor de História e Sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Segundo o especialista, para entender a intentona que completa cem anos neste mês é necessário compreender o contexto da Alemanha e do restante da Europa naquele período.
O país sofria os efeitos da derrota na Primeira Guerra Mundial e do Tratado de Versalhes, que impôs aos países vencidos uma série de sanções, restrições e pesadas multas a serem pagas às nações vencedoras, como Inglaterra e França.
As dificuldades políticas e econômicas desembocaram em um período conhecido como República de Weimar, em que a Alemanha esteve mergulhada em uma hiperinflação, desemprego e carestia, além da ameaça constante de confisco de bens e territórios por parte dos poderosos vizinhos europeus.
Na República de Weimar, um simples pãozinho ou um exemplar do jornal do dia custavam bilhões de marcos (moeda da época), por causa da hiperinflação. A falta de trabalho e as dificuldades pós-guerra afligiam a população. “A inflação alta, a crise econômica, as humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes, como restrições à produção industrial e à formação das Forças Armadas, além do sentimento nacionalista em baixa, tornavam o clima propício à formação desses grupos extremistas”, explica Santana.
Os nazistas procuravam surfar na onda da insatisfação popular para se fortalecerem e forçar a derrubada do governo moderado do presidente social-democrata Friedrich Ebert, o primeiro presidente da República Alemã, eleito após a abdicação do imperador Guilherme II, em 1918.
Ligado aos sindicatos, ex-seleiro e proprietário de uma pequena taverna na cidade de Bremen, o presidente Ebert, que era uma pessoa simples e não chegou ao oitavo ano de estudos, venceu de maneira inesperada a primeira eleição da jovem república, em 1919. Por causa da sua trajetória antes de chegar à presidência, era chamado de forma pejorativa pelos inimigos de extrema-direita de “dono de bordel”.
Hitler também se inspirava em outro aspirante a ditador, Benito Mussolini, que havia levado os fascistas ao poder na Itália, um ano antes. A ideia era repetir em Berlim o sucesso da Marcha sobre Roma, passeata promovida pelos fascistas, em outubro de 1922, para forçar o rei italiano Vítor Emanuel III a substituir o primeiro-ministro italiano, entregando o poder ao ditador Mussolini.
O plano de Munique tinha todo um roteiro programado com antecedência e envolvia conquistar o apoio do comissário-geral do estado da Baviera, Gustav von Kahr; do comandante dos militares bávaros, Hermann von Lossow; e do chefe da polícia estatal, coronel Hans von Seisser, chamados para o evento na cervejaria e que depois alegaram terem sido coagidos a demonstrar apoio público aos rebeldes.
Outro personagem importante é o general-intendente do Exército Alemão durante a Primeira Guerra Mundial e ídolo da extrema-direita, Erich Ludendorff, também convidado e, este sim, mais simpático ao levante, apesar de também negar envolvimento prévio com os projetos de Hitler.
Em outra frente do plano, cerca de 125 homens da Stosstrupp Hitler, uma milícia a serviço do presidente do partido, cercaria a cervejaria para consumação do golpe. “Crueldade impressiona”, dizia Hitler, instruindo os soldados milicianos a serem violentos e abandonarem a luta “depois de mortos”.
Por volta das 8 da noite daquele 8 de novembro, Hitler chegou à Bürgerbräukeller, onde foi aclamado por cerca de 300 pessoas. Foi direto ao salão de banquetes com seus correligionários, onde garçonetes circulavam com canecas cheias de cerveja e o cheiro de bife e sauerbraten – carne assada típica alemã – enchia o ar do local. Jornalistas nacionais e estrangeiros, chamados antecipadamente pelo Partido Nacional, diplomatas, banqueiros e homens de negócios esperavam os anunciados pronunciamentos de Kahr e outros.
Após um discurso morno de Kahr, em que nada falava de golpe, mas apenas palavras vagas de críticas aos comunistas, às 20h30 os homens da Stosstrupp fecharam todas as saídas da cervejaria e ninguém entrava ou saía. Num gesto combinado anteriormente, Hitler, que bebia uma cerveja, espatifou o copo no chão, foi em direção ao palco do salão de banquetes com a pistola em punho e, após dar um tiro para o alto, gritou: “a revolução nacionalista foi desencadeada”. Com uma voz aguda e áspera, dizia que os governos da Baviera e de Berlim haviam sido derrubados, os quartéis da polícia e do Exército ocupados e 600 homens haviam cercado a Bürgerbräukeller. Ninguém podia sair.
“Tudo isso era, claro, um blefe, mas ele esperava que logo se tornasse verdadeiro. Ele suava consideravelmente. Parecia louco, bêbado, ou ambas as coisas”, registrou o historiador e escritor David King no livro 'O Julgamento de Adolf Hitler'. Feitos praticamente de reféns, os homens fortes da Baviera – Kahr, Lossow e Seisser – tentavam dissuadir Hitler de levar adiante um plano que poderia até ser interessante, mas estava fadado ao fracasso.
Durante uma longa ausência de Hitler do salão de banquetes, considerado um erro estratégico do füher, os três acabaram liberados por Ludendorff, com o compromisso de que, ainda naquela noite, todos se reuniriam no Ministério da Guerra em Munique para combinar a marcha sobre Berlim, o que, obviamente, não aconteceu, e o evento da cervejaria se dispersou naquela noite.
O gerente da Bürgerbräu, avaliando os estragos da noite, enviou tempos depois uma conta ao partido nazista no total de 11.344.000.000.000 de marcos para reparação dos prejuízos. Além das enormes quantidades de comida, cerveja e café consumidos, havia uma longa lista de cobrança por itens furtados ou quebrados: 143 canecos de cerveja, 80 copos, 98 banquinhos, duas estantes de música, um espelho e 148 talheres. Estranhamente, a conta não mencionava os buracos à bala no teto e não se sabe se os mais de 11,3 quatrilhões de marcos foram efetivamente pagos. Os salões da enorme Bürgerbräu tinham capacidade de abrigar cerca de 3 mil pessoas.
No dia seguinte à confusão na cervejaria, 9 de novembro, os nazistas programaram uma passeata pelas ruas de Munique. Porém, não contavam com a contraofensiva ao putsch liderada por agentes militares e policiais locais, sob as ordens e apoio oficial de Berlim. Os três homens poderosos reféns na noite anterior na cervejaria – Kahr, Lossow e Seisser – também apoiaram as forças legalistas.
Após marcharem por cerca de duas horas, as centenas de manifestantes com bandeiras de suásticas, entonando gritos de “Heil Hitler” e escoltados pela Stosstrupp chegaram à região da Odeonsplatz, no centro da cidade, onde havia policiais e soldados legalistas fortemente munidos e carregados.
Do nada, começou uma grande confusão. “Ninguém, na ocasião ou depois, respondeu satisfatoriamente sobre quem disparou o primeiro tiro. Os putschistas culparam a polícia e vice-versa”, diz King, em seu livro. O que se sabe é que, iniciado o combate, tudo virou “horror, agonia e confusão”.
Na Odeonsplatz e ruas próximas, policiais atiravam furiosamente contra os manifestantes, sendo revidados pelos milicianos armados. Tudo aconteceu com “a velocidade de um raio”, conforme descreveu Ludendorff sobre a área de Munique transformada em praça de guerra.
O saldo da carnificina foram 20 mortos, entre nazistas, policiais e um homem, garçom, chamado Karl Kuhn, que não tinha nada a ver com a manifestação e estava apenas cruzando a praça em direção ao trabalho. O golpe que pretendia derrubar o presidente da república fora completamente sufocado e debelado a bala, mas as mortes de manifestantes serviriam para a propaganda nazista. “O golpe não deu certo porque eles não tinham armamentos e formação militasuficiente. Mas esses mortos vão se tornar mártires e heróis da causa nacional-socialista”, explica o professor Santana, do Mackenzie.
Hitler, não se sabe como, conseguiu escapar da confusão na Odeonsplatz e foi para a casa de um correligionário, Ernst Hanfstaengl, na aldeia de Uffing, a cerca de 20 quilômetros ao sul de Munique. No abrigo, desesperado com o fracasso do golpe, Hitler pensou seriamente em cometer suicídio, mas foi dissuadido pela família de Hanfstaengl. Dois dias depois, foi preso por policiais que faziam buscas na região. Cabisbaixo, em momento algum resistiu à prisão.
Hitler e seus companheiros foram condenados a cinco anos de prisão por alta traição à pátria, mas ficaram poucos meses atrás das grades e foram soltos em seguida. Um dos maiores medos do líder nazista era a deportação pelos crimes obtidos para a Áustria, já que ainda não era oficialmente um cidadão alemão. Mas isso não aconteceu. Em um julgamento considerado muito brando para todos os envolvidos no putsch, Ludendorff foi absolvido.
No período em que passou na prisão Landsberg, Hitler recebeu tratamento vip e transformou a cadeia em um verdadeiro polo nazista. Sua cela, a de número 7, era confortável, arejada, com vista para um jardim e maior do que o próprio quarto em que viviam em Munique. Ele recebia visitas constantes e muitos presentes. A rotina do encarcerado parecia mais de um famoso hóspede de hotel, com direito a boas refeições, caminhadas pelo jardim e até uma saleta para reuniões. Era sinal de que o nazismo já espalhava seus tentáculos para a sociedade e as instituições alemãs, inclusive o Judiciário.
“A reclusão forçada na prisão seria de muito mais proveito para Hitler do que para a Alemanha ou o mundo. Ele não só teve tempo para refletir sobre erros e acertos do seu putsch e sua carreira – algo em que ele raramente mostrava grande talento ou inclinação – mas também gozaria do avanço da admiração de seus apoiadores”, diz trecho de 'O Julgamento de Adolf Hitler'. “Esses colegas de prisão adulavam-lhe a vaidade, alimentavam suas ambições e contribuíram de muitas outras formas para a câmara de eco do Partido Nacional Socialista que surgia perigosamente em Landsberg.”
Também foi na prisão que Hitler escreveu seu livro 'Mein Kampf', ou 'Minha Luta', que se transformaria na bíblia do nazismo. O livro, conforme explicam seus biógrafos, na verdade é um apanhado dos discursos que ele fez ao longo da sua carreira política e durante a sua defesa no julgamento do putsch, na Corte de Munique, e mais algumas passagens da sua vida. Ou seja, um arrazoado cercado de fanatismo e muitas vezes sem sentido histórico. Há também uma homenagem aos nazistas mortos durante o golpe na Odeonsplatz, tratados pelo autor como heróis e mártires.
Em dezembro de 1924, Hitler deixou a prisão e retornou ao apartamento na Thierschstrasse, 41, onde era aguardado por amigos. “Hitler desceu do banco de trás do automóvel negro, agora vendo a si mesmo como seus apoiadores mais fanáticos o viam – ou seja, não como o orquestrador do putsch fracassado, mas como um líder, um füher, destinado a governar a nação.”
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