Entre censurados e exilados, compositores e intelectuais fizeram da música importante ferramente de resistência contra o governo militar
Fabio Previdelli Publicado em 06/03/2024, às 21h00
Com João Goulart deposto por um golpe, o governo militar 'assumiu' o poder em 1º de abril de 1964. Durante 21 anos, Atos Institucionais conferiram legitimidade às violências e ilegalidades cometidas pelo regime.
A classe artística também sofreu, sendo perseguida, exilada, morta e censurada pela ditadura. Importante fonte de resistência, a música serviu como grito de protesto, desespero e alívio.
Para driblar as proibições, compositores e intelectuais se reinventaram. "Quando eu escrevia, tentando passar pela censura, tive que trabalhar com metáforas", disse José Carlos Capinan à equipe do Aventuras em entrevista exclusiva publicada em 2021.
Em matéria publicada pela Agência Brasil, a professora Heloisa Buarque de Hollanda, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), contextualiza que, antes da ditadura, a classe musical debatia sobre reforma agrária e outros meios de justiça social.
"Antes de 64, a cultura estava procurando falar para os operários, para os camponeses, ia às favelas. Agora [na resistência à ditadura] era a classe média falando para a própria classe média, mas com muito vigor, muito talento e muita garra", diz.
Foi uma resistência que entrou no lugar da política, da participação direta na luta pelas reformas", continua.
Neste período, surgiu a Tropicália — movimento que mesclava tradições da cultura brasileira com inovações estéticas radicas, além, é claro, de manifestações contra a ditadura.
Nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto e Tom Zé subiam nos palcos para mostrar toda sua indignação contra a repreensão que a sociedade enfrentava. Se tornaram porta-vozes da liberdade.
Mas eles não foram os únicos. Milton Nascimento (expoente do Clube da Esquina), Gonzaguinha e até mesmo Adoniran Barbosa sofreram com a censura. Um dos exemplos mais clássicos da perseguição da ditadura contra as artes é a canção 'Pra Não Dizer que Não Falei das Flores', de Geraldo Vandré.
Segunda colocada na fase nacional do Festival Internacional da Canção de 1968, no Rio de Janeiro, a música, também conhecida como 'Caminhando', se tornou um hino da resistência. Por esse motivo, Vandré foi exilado pouco após o Ato Institucional 5, o AI-5, ser decretado em 13 de dezembro de 1968.
Conforme recorda Capinan ao site Aventuras na História, com o cerco de repressão cada vez mais acentuada, as perseguições e prisões se tornaram práticas comuns do regime. "Muita gente que eu conhecia, que eram meus amigos, colegas, sumiram… Alguns eu até consegui encontrar depois, mas outros eu jamais vi novamente".
Para 'fugir' da perseguição, o letrista teve de sair da casa de seu pai. Depois de São Paulo, ele se mudou para o Rio, onde morou por mais de 10 anos. Durante suas idas e vindas, encontrava tempo para protestar em forma de poesia.
"Quando eu escrevia, tentando passar pela censura, tive que trabalhar com metáforas. É o caso de 'Soy Loco por ti América', escrita no dia da morte de Che Guevara", conta o grande artista. "Apesar da música não falar o nome dele, o cito quando digo 'El nombre del hombre muerto/ Ya no se puede decirlo, ¿quién sabe?'", explica.
As metáforas, aliás, se tornaram práticas comuns para evitar o choque direto com a censura. Outro exemplo emblemático é a canção Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, que usou a palavra título por ter a pronúncia igual à expressão "cale-se".
Conforme recorda a Agência Brasil, a partir do AI-5, Buarque, por ser um alvo certeiro da censura, chegou a usar o pseudônimo Julinho da Adelaide para que suas músicas fossem aprovadas mais facilmente. Assim, conseguiu a liberação, por exemplo, de 'Acorda, Amor'.
Nem mesmo uma das mais tradicionais festas populares do Brasil saiu ilesa à censura. Em 1967, a Acadêmicos do Salgueiro sofreu na pele as proibições dos militares no carnaval daquele ano.
Na ocasião, a escola apresentou o samba-enredo 'A História da Liberdade no Brasil', do carnavalesco Fernando Pamplona. Em 'Salgueiro, 50 anos de glória', Haroldo Costa narra que agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) tinham presença cativa nos ensaios da agremiação.
Já em 1974, foi a vez de um dos grandes nomes do samba sofrer do mesmo mal: Martinho da Vila. Naquele ano, sua composição, 'Tribo dos Carajás', foi excluída da disputa pelo samba-enredo Unidos de Vila Isabel.
"Depois de muito tempo é que eu fui saber. Nós estávamos na ditadura militar, e eles não queriam que falassem de índio, não sei o que, essa coisa do homem branco. Eles interferiram dentro da escola e falaram: 'esse samba não pode ganhar'. Aí eles cortaram meu samba", disse em entrevista à Washington Olivetto no WCast.
Mas nem só de proibições artísticas se fez a ditadura. Durante o período, os militares ainda tentaram usar a cultura para promover a ideologia oficial do governo.
Durante os anos de Emílio Garrastazu Médici no poder, canções como 'Eu Te Amo, Meu Brasil', da dupla Dom e Ravel, eram incentivadas; assim como a pressão para que as escolas de samba produzissem enredos ufanistas e que enaltecessem o regime.
A Beija-Flor de Nilópolis, resgata a Agência Brasil, que havia chegado recentemente aos desfiles, foi uma das escolas a adotar essa vertente, com desfiles cujos temas tratavam assuntos governamentais, como o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural).
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