As últimas notícias no Oriente Médio nos levam a crer que este é um caso isolado. Porém, as disputas no bairro existem desde os anos 1960
Coluna - André Nogueira, historiador Publicado em 22/05/2021, às 08h00
Nos últimos dias a questão humanitária da Palestina retomou as páginas dos jornais por conta dos acontecimentos no bairro do Sheik Jarrah, um centro histórico importante de Jerusalém Oriental. Sítios do local estão sendo requeridos por Israel para ocupação de famílias judias, tendo como inevitável consequência a saída de palestinos que hoje lá moram.
Jerusalém Oriental é palco de disputas políticas há séculos, justamente por sua relevância geográfica e cultural como lugar mais importante do mundo para uma série de religiosidades. A natureza tumultuada de Sheik Jarrah, que tem esse nome em homenagem ao médico pessoal do imperador Saladino, que conquistou a cidade dos bizantinos, pode ser projetada séculos para trás, mas os atuais eventos do conflito têm raiz nas querelas que envolvem as mais recentes questões centradas no imperialismo moderno.
A Palestina, por décadas, foi dominada pelos britânicos, que tomaram a região das mãos turcas. O período otomano foi marcado pela diversidade religiosa, o que significa dizer que judeus (cerca de 8% da população à época) e muçulmanos (maioria) conviviam em paz.
Portanto, o conflito tem origem nas políticas demográficas inglesas: o Império negociava com os árabes planos de independência, uma vez que os locais colaboraram com a derrota dos otomanos na Primeira Guerra, enquanto colaborava, por interesse geopolítico, com uma imigração em massa de judeus europeus sionistas ligados a Theodor Herzl para a colonização populacional do Oriente Médio.
Já nessa época se negociava a criação de um Estado de judeus na Palestina. Como a administração britânica, assim como a política de ocupação judaica a ela associada, era de clara natureza colonial, uma série de revoltas explodiu na Palestina da época, principalmente em Jerusalém Oriental, como ocorreu em 1929.
Em meio ao caos criado, e com a nova reconfiguração do mundo no pós-Segunda Guerra, o Reino Unido colaborou com uma ‘independência’ da região, passando seu Mandato para a ONU. O órgão, por sua vez, criou a “Solução dos Dois Estados”, algo que nunca se concretizou e debulhou, inevitavelmente, uma série de conflitos: as Nações Unidas reconheceram o Estado de Israel em 1948, mas nunca foi aceita a Autoridade Palestina, que vem perdendo progressivamente o território estabelecido no mesmo ano.
Cidade mais importante do conflito, Jerusalém teria oficialmente sido declarada área internacional, sem poder ser controlada por nenhuma das partes (com ocupação pacífica de todos os povos, incluindo seguidores do cristianismo ortodoxo, católicos, coptas, curdos, etc.).
Porém, isso logo foi modificado, com a guerra de 1948, originada do nascedouro unilateral do Estado judeu. A resolução do conflito foi a de dividir a cidade, ocupar a área ocidental com populações judias e passar o controle do lado Leste para a Jordânia, que conquistou a área até 1967, quando, em nova guerra, Israel tomou boa parte dessa que é a área mais importante e sagrada da cidade, onde está a Cúpula da Rocha, o que, no direito internacional, é conhecido como Ocupação Beligerante.
Desde então, Jerusalém Oriental vem sendo tomada aos poucos pelas ocupações israelenses. Com armamento de primeira qualidade, formação e organização próprias de um Exército de Estado, Israel domina cada vez mais a região com bastante facilidade, tendo como principal oponente a nível militar as Brigadas Al-Qassam do Hamas.
Portanto, quando se coloca a atual querela em Sheik Jarrah como uma simples e pontual disputa de posses imobiliárias, se ignora a profundidade da questão, que envolve uma dominação colonial do território palestino. Aqui é importante ressaltar como a crítica às políticas violentas de dominação por parte de Israel NÃO tem em nada conexão com qualquer ataque ao povo judeu.
Outra justificativa usada pelo Exército israelense para culpar os palestinos pela perda dessas terras é a hostilidade do núcleo de independência armado das Brigadas, que pratica retaliações violentas às ações de colonização israelenses.
O caos armado com o Hamas (que hostiliza em muitos campos com a Organização de Libertação da Palestina e o Fatah) favoreceu a expansão de Tel Aviv, e chegou a ser usado para legitimar até ações na atual pandemia de bloqueios de insumos básicos de sobrevivência em terras árabes e aumento das represálias nas áreas urbanas.
Sempre houve judeus em Sheik Jarrah, assim como em toda a Palestina, que nunca foi composta apenas por árabes. Isso, inclusive, é usado como justificativa para uma série de assentamentos coloniais israelenses, que usam propriedades históricas de famílias judias na Jerusalém Oriental (o caso mais famoso é o do Shepherd Hotel) para legitimar uma tomada generalizada da região.
Famílias palestinas vêm perdendo suas casas e sendo lançadas ao deus-dará sob o argumento de supostas compras definitivas por parte de judeus de territórios da cidade durante a ocupação otomana da região. Todas as defesas contra esses documentos suspeitos foram barradas por tribunais israelenses, que declararam as posses como inquestionáveis.
Em alguns casos, moradores de Sheik Jarrah passaram a ser obrigadas a pagar aluguéis caros a cidadãos judeus para morarem nas casas que viviam há séculos como família, o que culminou em mais uma série de atritos jurídicos, em que disputam a lei de um Estado contra a resistência de uma comunidade à qual um governo foi negado; o resultado, obviamente, favorece constantemente o lado israelense, mais poderoso.
O processo de gentrificação acabou expulsando os moradores de Jerusalém para a Cisjordânia, outro lugar em franca conquista por parte de Israel. Essa violência se provou verdadeira com os recentes ataques ao bairro. Por conta da resistência palestina nessa disputa territorial, tropas israelenses foram usadas na repressão aos civis locais, de maioria muçulmana, que se reuniam próximos ao Portão de Damasco para comemorar o feriado religioso Ramadã.
Dezenas foram detidas, mais de 100 indivíduos foram mortos (sendo dezenas deles crianças). A importante mesquita de Al-Aqsa foi invadida, ocupada e incendiada. Tudo com comemorações de sionistas radicais que cantavam segurando bandeiras de Israel assistindo às chamas. Atualmente a maior entidade representante da resistência palestina, os radicais do Hamas exigiram a saída das tropas judias do local sagrado, o que foi ignorado.
As tensões escalaram e o conflito armado aumentou em Jerusalém e em Gaza, onde a entidade islâmica tem base e maior apoio popular. Até prédios da imprensa árabe, como o escritório da Al Jazeera em Gaza, foram derrubados por bombas da Tzahal após aviso de evacuação em uma hora (sem que fosse permitida retirada de equipamentos).
Basicamente, o que aconteceu em Sheik Jarrah é um exemplo de um conflito muito maior e que é marcado pelo completo desequilíbrio de forças.
André Nogueira é historiador, formado pela USP (Universidade de São Paulo).
**A seção 'Coluna' não representa, necessariamente, a opinião do site Aventuras na História.
O que é o trabalhismo brasileiro?
Como os vietnamitas conseguiram vencer os EUA na guerra?
Brizola foi acusado pela CIA de organizar um atentado contra Costa e Silva
A Bíblia é verdadeira ao descrever o Cativeiro da Babilônia?
O sonho de Casemiro: entenda a importância da criação do Instituto de Tecnologia de Aeronáutica, o ITA
Energia elétrica na antiguidade? Conheça a curiosa Bateria de Bagdá