O mais famoso detetive foi criado na Inglaterra do século 19 não por acaso. Nascia ali a polícia profissional. As façanhas de seus investigadores reais não perdem nada para as da ficção
Tiago Cordeiro Publicado em 02/03/2010, às 04h24 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
O padre ferido durante um assalto é levado para a casa mais próxima, onde a locatária aponta um divã para que repouse. Pouco depois, ele começa a tossir. Uma das pessoas que o socorreu grita: "Fogo!" A primeira reação da senhora, em pânico, é buscar um papel na gaveta de uma cômoda. Imediatamente, o padre acalma a todos e diz que se trata de um engano. O homem que dera o alarme falso sai sorrateiramente. O sacerdote também vai embora. Na rua, eles se encontram, satisfeitos: Sherlock Holmes e John Watson já podem abandonar as fantasias e voltar para o escritório na Baker Street, 211B. Descobriram onde Irene Adler esconde a fotografia que buscam, uma ameaça para o reino da Bavária. Mestre na dedução e nos disfarces, Holmes domina técnicas de luta e armas, conhece anatomia, botânica e química. Quando envolvido em um caso, quase não come e injeta-se cocaína diluída para ficar acordado. Na Inglaterra do fim do século 19, é o único que soluciona os crimes mais complicados. Isso tudo, claro, nos quatro romances e 56 contos de Arthur Conan Doyle.
Holmes incorporou a imagem do detetive perfeito. Com sua capa, lupa, chapéu e cachimbo, está em praças por toda a Grã-Bretanha. Protagonizou 200 filmes, com 70 diferentes atores no papel (o mais recente é Robert Downey Jr., na versão do diretor Guy Ritchie). É o personagem mais recorrente da história do cinema - aliás, foi nas telas que apareceu a famosa frase "Elementar, meu caro Watson!", nunca dita nos livros. Mas Sherlock não surgiu por acaso. Enquanto escrevia suas histórias, o médico escocês Conan Doyle vivia na terra da melhor polícia do mundo. Ao mesmo tempo que seu personagem caçava bandidos sanguinários e falsárias astutas, os ingleses inventavam uma força policial de organização e técnicas que seriam imitadas em todo planeta.
Escravos e milícias
O combate à criminalidade existe desde as origens da civilização, mas as formas de fazê-lo variaram bastante. Na China antiga, os delitos eram investigados pelos prefeitos. Na Grécia, o policiamento de rua ficava por conta de escravos. Em Roma, a função era do Exército; na Espanha medieval, de milícias armadas organizadas, as Hermandades, que existiram até 1835. Em 1667, o rei Luís XIV da França criou a primeira versão de uma polícia formal - o significado atual da palavra "polícia" apareceu entre os franceses. Pouco antes, em 1626, Nova York já tinha seu próprio xerife.
Até meados do século 19, porém, não havia uma força organizada, com salários fixos, treinamento específico e, principalmente, dedicada a prevenir os crimes. Essa nova entidade surgiu na Inglaterra, que até 1820 era um dos países mais atrasados da Europa nesse quesito - a segurança ainda era responsabilidade de guardas noturnos recompensados quando encontravam ladrões. "Não existia o conceito de polícia para todos. Agentes só se mobilizavam nos casos que envolvessem a nobreza ou as recompensas fossem muito altas", diz o sociólogo britânico Barry S. Godfrey, diretor do Instituto de Pesquisa da Lei, da Política e da Justiça da Universidade Keele.
Isso mudou quando o secretário de Estado Robert Peel propôs um novo modelo, que em 1829 se tornou a Polícia Metropolitana de Londres. Scotland Yard é o nome da sede. Começava então um período de testes e experimentações que durou até 1856. "O policial caminhando pelas ruas, protegendo os pobres e ricos da mesma forma, sem nenhuma arma a não ser um pequeno cassetete de madeira, tornou-se um símbolo da sociedade britânica", afirma Godfrey. Entre 1890 e 1950, a polícia britânica seria, de longe, a mais igualitária e eficiente do mundo. Na época, o código penal listava um número pequeno de delitos: agressões, assassinatos, assaltos, conspiração contra autoridades e exploração de menores, entre outros. As ocorrências não passavam de 2 mil por ano, para uma cidade que tinha 3 milhões de habitantes. Hoje são 7,5 milhões de moradores e 1 milhão de delitos anuais.
Os policiais franceses também tinham uma hierarquia clara, normas de conduta e uniformes desde 1829 (boatos do fim do século 19 sugerem que os detetives do país eram orientados a ler as histórias de Sherlock em busca de inspiração e de técnicas de investigação). Mas a revolução protagonizada pelos ingleses consistiu em duas novidades: o treinamento para a prevenção de crimes e o uso de novas tecnologias para a investigação. Os britânicos analisavam pegadas, marcas de rodas, cinzas de cigarro, textos escritos a mão, manchas de sangue, resíduos de pólvora, fotografias e até mesmo impressões digitais - todos elementos encontrados nas histórias de Sherlock Holmes.
Fotos e digitais
Os investigadores ingleses passavam muito tempo nas ruas, entre seus informantes e nos locais de maior concentração de crime - outra prática inédita para um mundo onde a regra era ver mais policiais nas áreas mais ricas, exatamente onde menos crimes aconteciam. Eram homens muito experientes. Ao fim do século 19, a maioria já tinha treinamento para não comprometer uma cena de crime, usar as tecnologias disponíveis e abordar criminosos de forma a não colocar em risco as vítimas. "Londres foi a primeira cidade a dispor de um banco de dados com fotos e impressões digitais de todos os acusados", diz o historiador David Taylor, professor da Universidade de Huddersfield.
Nos interrogatórios, o suspeito que não confessasse estava sujeito a afogamento controlado, pancadas e celas escuras sem banheiro ou alimentação. "A grande diferença em Londres é que os agentes só passaram a recorrer a esses métodos mais violentos quando tinham indícios muito fortes contra o suspeito. Em outros lugares, a tortura dentro das delegacias era indiscriminada", afirma Godfrey. Foi só ao longo do século 20 que todo suspeito ganhou o direito a ser acompanhado por um advogado.
Alguns investigadores do período ficaram famosos pela capacidade dedutiva e pela eficiência com que resolviam os crimes mais complexos (veja quadro à esq.). Eles foram capazes de identificar e prender serial killers que haviam escapado ilesos em outros países, como Canadá (veja à dir.). Mas nenhum caso de sucesso foi tão retumbante quanto o fracasso em localizar o famoso Jack, o Estripador, que aterrorizou Londres a partir de 1888. Os melhores policiais do mundo na época não conseguiram nem identificar o assassino. Seria um prato cheio para Sherlock Holmes...
Em tempo: o epidódio que abre esta reportagem faz parte do conto Um Escândalo na Boêmia e não termina bem para nosso herói. A bela Irene Adler percebe que havia sido enganada e foge durante a madrugada, antes que Holmes pudesse voltar e resgatar a fotografia em que ela aparecia com o príncipe da Bavária. Prestes a se tornar rei, o nobre queria evitar um escândalo. "A mulher", como passou a chamá-la Sherlock, foi uma das poucas pessoas que conseguiram enganar o maior detetive da literatura.
Baseado em fatos
Médico escocês inspirou Doyle
Sherlock Holmes existiu, mas era médico. Em 1877, Arthur Conan Doyle era assistente do cirurgião Joseph Bell na Enfermaria Real de Edimburgo. Bell defendia que, para tratar um paciente, era preciso conhecer seus hábitos. Para não ser enganado, criou um método dedutivo que permitia a ele estabelecer diagnósticos com a ajuda de detalhes da roupa e da expressão corporal. Onze anos depois, Doyle criaria Holmes inspirado em Bell. Em 2004, surgiria na TV Gregory House, o médico genial do seriado. Seu apartamento é o 221B, o mesmo de Sherlock.
Lei e ordem
Os melhores investigadores ingleses da época de Sherlock
Jonathan "Jack" Whicher
Detetive da polícia de Londres desde 1837, ajudou a fundar a Scotland Yard. Solucionou dezenas de crimes, mas o assassinato do menino Saville Kent arranhou-lhe a reputação. Ele apresentou como suspeita a adolescente Constance, inocentada por falta de provas. Ela confessou anos depois, mas Whicher já estava morto.
Charles Frederick Field
Perito em se infiltrar disfarçado em cenas suspeitas, foi um dos melhores investigadores da Scotland Yard. Depois virou detetive particular: desvendou vários casos de roubo antes da polícia e um de envenenamento de três pessoas. Serviu de inspiração para o inspetor Bucket, de Charles Dickens.
Edwin Coathupe
Considerado um dos melhores detetives da história, estudou medicina e chegou a trabalhar em dois hospitais até se tornar policial. Antes de assumir cargos de chefia, passava boa parte do dia na rua, entre suas fontes de informação, investigando casos e fazendo policiamento preventivo.
Melville Macnaghten
Comissário da polícia de Londres entre 1903 e 1913, era mestre em orientar detetives e organizar informações. Em 1894, foi responsável pelo melhor relatório feito sobre Jack, o Estripador. Seu texto, só revelado ao público em 1954, ainda é a fonte mais confiável sobre o episódio.
Procurados
Os assassinos que aterrorizaram a Grã-Bretanha do século 19
Thomas Neil Cream
Escocês educado no Canadá, foi forçado a se casar com uma jovem a quem engravidou. Ela, como outras de suas amantes, morreram envenenadas com clorofórmio e estricnina. Fez ao menos cinco vítimas no Canadá, Estados Unidos e Inglaterra, até ser preso pela polícia inglesa e enforcado em 1892.
Catherine Wilson
Enfermeira inglesa sedutora, servia taças com ácido sulfúrico para suas vítimas, geralmente doentes idosos convencidos a incluí-la em seus testamentos. Foi julgada e condenada à forca pelo envenenamento de Maria Soames, mas possivelmente matou outras seis pessoas. Foi executada em 1862.
William Burke e William Hare
Os maiores ladrões de túmulos da Escócia vendiam os corpos para um professor particular que atendia alunos de anatomia da Escola Médica de Edimburgo. Também mataram 17 pessoas com igual objetivo. Hare entregou o parceiro, enforcado em 1829, e nunca mais foi visto.
Jack, o Estripador
Em 1888, mutilou e matou pelo menos cinco prostitutas do bairro londrino de Whitechapel. Os crimes levaram outros assassinos a imitar seu método: as vítimas eram estranguladas, tinham a garganta cortada e alguns órgãos removidos. Nunca foi identificado.
Saiba mais
LIVROS
The New Police in Nineteenth-century England, David Taylor, Manchester University Press, 1997
Relata o processo de profissionalização da polícia britânica.
The Suspicious of Mr Whicher, Kate Summerscale, Bloomsbury, 2008
A atuação do investigador Jack Whicher no caso do assassinato de Saville Kent.
Um Escândalo na Boêmia, Arthur Conan Doyle, Ediouro, 2003
Traz o conto que abre esta reportagem, publicado pela primeira vez em 1891, além de outras cinco histórias e uma introdução de Paulo Mendes Campos.
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