O que Josef Mengele, o marquês de Sade e Bin Laden têm em comum? A crueldade. Historiadora francesa analisa a perversão através dos tempos, desde a Idade Média até os dias de hoje. É de arrepiar
Fernando Eichenberg Publicado em 18/06/2009, às 07h30 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36
Belo, elegante, perfumado, de luvas brancas e assobiando árias da ópera Tosca, de Puccini, o médico alemão Josef Mengele selecionava as cobaias humanas para suas atrozes experiências científicas com um leve toque de seu chicote de cavaleiro na ponta de uma das botas do eleito. A cena se repetia na rampa do campo de concentração de Birkenau, no complexo de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial.
O "Anjo da Morte", como ficou conhecido, venerava as sinfonias de Beethoven, adorava cães, apreciava torta de maçã e tratava a todos com extrema polidez. Com meticulosidade,
registrava em um bloco pequeno incidentes da vida cotidiana: pias entupidas, aspiradores estragados ou panes de eletricidade. Enquanto enviava milhares de prisioneiros para os fornos crematórios e as câmeras de gás, anotava em seu diário eventuais males de que sofria, como dores de cabeça, reumatismos ou diarreias.
Com cinismo exacerbado, total ausência de afeto e fanatismo científico, Josef Mengele foi um típico exemplo de criminoso perverso. Seu fim é conhecido. Com a derrota nazista, fugiu para a América do Sul, morreu sob nome falso em 1979, na praia de Bertioga, litoral norte de São Paulo, no Brasil, e foi finalmente identificado em 1992, graças a testes feitos após a exumação de seu cadáver. A perversidade sempre atraiu a curiosidade humana, em uma mórbida fascinação combinada a um eterno confronto com "a parte obscura de nós mesmos". Onde começa a perversão e quem são os perversos? Para além da psicanálise, a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco foi atrás de respostas a essas questões ao analisar, em um instigante ensaio, como a perversão foi identificada e tratada pelas sociedades ao longo dos séculos, sem deixar de lado os perversos do presente e seu provável destino, no mundo que se desenha.
O que caracteriza a perversão não é o mal em si, assinala a autora, mas o prazer do mal. Por isso, ela condena todas as teses que tentam justificar a perversão humana com exemplos do reino animal. A crueldade entre os bichos em nada se assemelha à do homem, pois é puramente instintiva. Quando Heinrich Himmler, chefe da SS no Reich, substituiu guardas de Auschwitz por cães, o resultado não foi bom: mesmo treinados para devorar os prisioneiros, os animais jamais se igualaram aos nazistas.
Trauma de infância
Para o psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), a perversão, explica Elisabeth, é natural ao homem. Clinicamente, é uma estrutura psíquica: ninguém nasce perverso, mas se torna, ao herdar uma história particular e coletiva em que se misturam educação, identificações inconscientes, traumas. A diferença está no que cada um fará da perversão que traz dentro de si: revolta, superação, sublimação ou, ao contrário, crime, aniquilamento de si mesmo e dos outros. Para Freud, a sublimação da perversão que trazemos potencialmente dentro de nós é encarnada pelos valores do amor, da educação, da lei e da civilização.
Antes de ser classificada como uma doença pela psiquiatria moderna, a perversão foi considerada, desde a Idade Média, como uma atitude transgressiva e criminosa, contra a ordem natural do mundo. Enforcado e queimado por hediondos crimes sexuais contra dezenas de crianças, o nobre francês Gilles de Rais (1404-1440) não se justificou por alguma paixão demoníaca ou instinto bestial. Ele culpou a educação recebida em sua juventude e o ódio ao seu avô. Ao cometer crimes perversos, que não visavam destruir um inimigo, mas, sobretudo, aniquiliar o humano do homem, Gilles de Rais se tornou agente de seu próprio extermínio, diz a historiadora. Até então, a sociedade se perguntava se esses aspectos sombrios estavam associados à ordem divina, como imposição ao homem, ou se resultavam da cultura e da educação.
Com o Iluminismo, a partir do século 17, as referências metafísicas são substituídas pela ideia de que o universo obedece às ordens da natureza, e de que o homem pode se libertar da antiga tutela da fé, da religião, do sobrenatural e também da monarquia absoluta. Filósofos como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Diderot (1713-1784) e pensadores libertinos levantam várias questões sobre a origem da perversão. É a expressão da natureza bárbara do homem, que o distinguiria do animal e deveria ser corrigida pela civilização? É fruto de uma má educação? Não deveria ser considerada como o sinal de uma perda (necessária) de todas as inocências? Essa última hipótese, que considera
a perversão a expressão sensual de um grande desejo de gozo do corpo, segundo o princípio de uma ordem natural rendida à sua força subversiva, é ilustrada pelo célebre marquês de Sade (1740-1814). Autor de Os 120 Dias de Sodoma, em que descreve crimes e práticas sexuais associadas ao prazer de causar sofrimento, ele propõe um modelo social fundado na generalização da perversão.
Para Elisabeth, o plano nazista da "solução final" (o extermínio dos judeus) é um corte histórico, um paradigma da maior perversão possível do ideal da ciência. Adolf Eichmann (1906-1962), responsável pela eliminação de 5 milhões de judeus, não era sádico, psicopata, pervertido sexual ou doente. "Era normal, terrivelmente normal, pois era o agente de uma inversão da lei, que havia feito do crime a norma", diz a autora.
A filósofa Hannah Arendt (1906-1975), que cobriu o processo de Eichmann em Jerusalém, em 1961, como correspondente da revista The New Yorker, escreveu: "Do ponto de vista
de nossas instituições e de nossa ética, essa normalidade é muito mais terrificante que todas as atrocidades reunidas, pois supõe que esse novo tipo de criminoso (...) comete crimes em circunstâncias tais que lhe é impossível saber ou sentir que faz o mal". Para Elisabeth, o nazismo criou um tipo de criminalidade que perverte não só a razão de Estado, mas a própria pulsão criminal: o crime é cometido em nome de uma norma racionalizada e não como expressão de uma transgressão ou pulsão não-domesticada.
O genocídio e o Tribunal de Nuremberg relançaram o debate sobre a origem do mal. A resposta jurídica não veio pela religião ou pela moral, mas pela psicologia científica. A ponto de um congresso de higiene mental realizado em Londres, em 1948, ter sugerido que os chefes de Estado do mundo fossem submetidos a uma cura psíquica, para reduzir instintos agressivos e garantir a paz no mundo. Mas, segundo Elisabeth, a normalidade dos genocidas não é sintoma de perversão no sentido clínico, mas de uma adesão a um sistema perverso.
Ditadura dos bons
Atualmente, o pedófilo e o terrorista são os alvos das sociedades globalizadas, diz a historiadora, que aponta Osama Bin Laden como o perverso absoluto, adepto da violência não por razões militares, mas por prazer. E acabar com a perversão é a nova utopia moderna. Mas Elisabeth questiona se uma ambição desse porte não corre o risco de tornar perversa a própria sociedade. O erro de nossa época, diz, é o retorno ao cientificismo, visto como capaz de erradicar a "parte obscura de nós mesmos", uma certeza perversa de que haveria
solução químico-biológica para todos os problemas. Seria a mais recente teoria do "homem novo", adepto do que chama de "biopoder". E adverte: "Talvez um dia, à força de negar tudo que se refere a uma subjetividade inconsciente, o discurso da ciência fará com que se acredite que a perversão não é mais do que uma doença e que os perversos podem ser eliminados do corpo social. Mas isso significaria que a palavra 'desvio' teria se imposto para designar, de forma perversa, todos os atos transgressivos de que é capaz a humanidade: os piores e os melhores".
Na vida real
Parece mentira, mas eles foram ruins de verdade
George Chapman (1865-1903)
Assassino em série polonês, envenenou várias mulheres e é suspeito de ter sido Jack, o Estripador.
Peter Kürten (1883-1931)
Assassino de crianças alemão. Inspirou o filme M., o Vampiro de Düsseldorf (1931), de Fritz Lang.
Rudolf Höss (1900-1947)
Oficial da SS, comandante do campo de concentração de Auschwitz.
Nero (37-68)
Imperador romano, mandou matar a mãe, Agripina, e foi acusado de ter incendiado Roma.
Tibério (42 a.C.-37. d.C.)
Imperador romano pedófilo, submetia meninos a cerimônias sexuais perversas.
Na ficção
Personagens muito maus da literatura e do cinema
Dorian Gray, de O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde.
O protagonista se mantém jovem, mas sua corrupção moral deixa marcas em sua imagem num quadro.
Vautrin, do livro A Comédia Humana (1842), de Honoré de Balzac.
Condenado, foragido, explorador e cruel, odeia as mulheres
Javert e Thénardier, de Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo.
Respectivamente, o policial frio que persegue o herói, Jean Valjean, e o vigarista que faz tudo por dinheiro
Homais, de Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert.
Farmacêutico avaro, ignorante e obscurantista.
Aschenbach, do filme Os Deuses Malditos (1970), de Luchino Visconti.
Oficial nazista que se infiltra em uma família alemã para destruí-la.
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