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Claudinei Roncolatto, soldado da paz

Militar e escritor esteve em duas missões da ONU. Foi à Guerra da Bósnia, como observador, e participou da Minustah, no Haiti

Douglas Portari Publicado em 01/09/2007, às 00h00 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h36

Nos anos 1990, como observador das Nações Unidas na Bósnia, onde atuava desarmado, ele esteve sob fogo de artilharia, viu um colega ser morto pelas traiçoeiras minas e ficou chocado com a morte de inocentes. Em 2005, como subcomandante de um contingente brasileiro na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah, na sigla em francês), atuou na pacificação da capital, Porto Príncipe, onde também contou baixas em suas colunas nos combates com rebeldes haitianos.

Em ambos os casos, portava sobre a cabeça um dos símbolos dos soldados de paz da ONU, o capacete azul. Claudinei Roncolatto, paulista que este ano entrou para a reserva do exército como coronel, foi vítima do que chama de “vírus das missões de paz”. Atravessou o Atlântico em 1993 e foi ao Caribe em 2005 por acreditar que elas fazem diferença. “Não podemos nos omitir”, afirma. Casado, pai de três filhos e doutor em Ciências Militares, ele também é autor de três livros, dois ainda inéditos.

Na Guerra da Bósnia, sobre sua experiência como observador militar no conflito da ex-Iugoslávia, foi lançado em 2003. Nesta entrevista exclusiva, Roncolatto fala, entre outros assuntos, de suas experiências no exterior.

Por que o senhor se apresentou como voluntário para missões da ONU?

Para a missão na ex-Iugoslávia, eu fui convidado. E teria sido uma enorme incoerência não aceitar. Como um militar que se preparou para o combate, poderia recusar uma missão pelo fato de ela envolver risco de morte? Já para o Haiti, efetivamente, me apresentei como voluntário: o vírus das missões de paz já estava instalado. Quem participa de uma missão de paz é voluntário para outras.

E como foi sua atuação na Bósnia?

Eu era observador militar da ONU, trabalhava desarmado. Durante um ano, de setembro de 1993 a setembro de 1994, atuei em Sarajevo e Zepa (ambas na Bósnia), Scopje (Macedônia) e Sibenik (Croácia). A missão no conflito da ex-Iugoslávia, a Guerra da Bósnia, era de manutenção da paz [o Capítulo VI da Carta da ONU]. Esse tipo de missão ocorre quando as partes em conflito celebram acordo para a cessação das hostilidades, cabendo às Nações Unidas monitorar seu cumprimento. Acordos nos Bálcãs ou eram rompidos com freqüência ou eram frágeis, facilmente corrompidos pela força. Aquela era uma missão de manutenção de paz anômala – não havia paz a ser mantida.

Após ser acusada de ser omissa e parcial nesse conflito, a ONU mudou alguns estatutos. Afinal, há diferença entre manutenção e imposição de paz?

Nem sempre a ONU é ágil, nem sempre suas múltiplas engrenagens trabalham sincronizadas. Mas, sem ela, o que teríamos? A imposição pura e simples da vontade dos mais poderosos? Me parece que a instituição, um grande edifício de muitos interesses, merece ser reparada, não demolida. Quanto à imposição de paz, o Capítulo VII da Carta da ONU prevê o emprego mais incisivo da força.

Isso muda algo na linha de frente?

Muda muito. Na vigência do Capítulo VII, o militar pode atirar não apenas para se defender de uma ação armada, mas também de forma antecipatória, quando houver uma ameaça de agressão. Ora, ameaça é algo subjetivo, daí a necessidade de um controle cerrado dos comandos sobre a tropa, para que não sejam cometidos excessos.

Houve momentos críticos na Bósnia?

Bem, estive algumas vezes em áreas batidas por jogos de artilharia. Em uma ocasião, freei a viatura que dirigia a poucos centímetros de uma mina anticarro... Mas me marcou muito a morte de Ramli, um observador muçulmano da Malásia, em uma patrulha a pé que realizávamos. Ele foi vítima de uma mina antipessoal no seu último dia de missão naquela área.

E no Haiti?

Tivemos no nosso contingente, o terceiro da missão no Haiti, sete feridos por arma de fogo. Um deles com muita gravidade. Choca ver um dos nossos ser atingido. O tenente Leone foi ferido severamente na região do ombro por um disparo de fuzil. Esteve muito próximo da morte. Hoje, em Brasília, o jovem catarinense vai se recuperando aos poucos.

No conflito da Bósnia havia lados opostos. No Haiti, nem se pode dizer que há uma guerrilha de fato, não é?

É verdade. Nos seis meses em que permaneci no Haiti, os chimères eram nossos grandes adversários, pela maneira fluida de atuar e pela dificuldade de identificação. Quem eram eles? Membros da resistência pró-Aristide, o ex-presidente? Ladrões, assassinos e seqüestradores que buscavam alguma legitimidade na suposta motivação política? A um só tempo, membros da resistência e criminosos? Ou até bandidos a soldo da elite poderosa que combatia Aristide? Aqueles que exerciam uma dessas atividades, ou mais de uma, eram chamados de chimères. Não é fácil reconhecer suas verdadeiras motivações.

Qual era sua função no Haiti?

Eu fui chefe do Estado-Maior e subcomandante do 3º Contingente Brasileiro, em uma missão que empregava o Capítulo VII da Carta da ONU. Cité Soleil [uma das grandes favelas do país] não era, então, nossa área de atuação. O grande mérito do contingente foi a consolidação da ocupação e a pacificação de Bel Air, gigantesca favela da capital, Porto Príncipe. A tática empregada, com grande utilização de pontos fortes, fixos e móveis, e o lançamento intensivo de patrulhas, foi muito bem-sucedida. A ONU considerou nossas ações como um exemplo de operação de pacificação em ambiente urbano.

Então, o exército pode agir nas favelas brasileiras contra o narcotráfico?

Essa é uma questão que tem de ser estudada com muito cuidado. Eu diria que, técnica e operacionalmente, é capacitado, sim, desde que os militares recebam treinamento similar ao que tivemos, ainda no Brasil, antes de seguirmos para a missão. Mas não podemos perder de vista que, no Haiti, mesmo realizando operações do tipo policial, atuávamos como componentes das nossas Forças Armadas, cumprindo regras de engajamento específicas e apropriadas. Não éramos, de forma alguma, uma força policial.

O soldado tem noção de que sua missão ali é preservar a vida e não destruí-la?

Não é esse o sentimento que temos, o de sermos preparados para a destruição da vida. Somos adestrados para defender o país de uma agressão – a própria Constituição Federal veda a guerra de conquista. Somos preparados para preservar a vida dos brasileiros em caso de guerra, ou a vida de estrangeiros sob grave ameaça de guerra civil ou genocídio. Seríamos um antídoto contra a guerra, só faríamos “uma guerra contra a guerra”. Por isso, filosoficamente, nada mudou no Haiti.

Uma crítica recorrente às missões é a de excessos ou crimes cometidos por soldados. Presenciou algum?

Não, não presenciei crimes. Qualquer excesso seria punido, no mínimo, com a repatriação do responsável. O que vi no 3º Contingente foi uma tropa altamente motivada e determinada.

Nas missões, o senhor sofreu hostilidade por parte dos nativos?

Demonstrações de hostilidade foram raras. Os soldados brasileiros, da tropa ou observadores militares, são parte de um povo multiétnico que vê o estrangeiro sem ódio. Livres de preconceitos e maniqueísmos, nossos capacetes azuis mantêm a imparcialidade requerida pelas missões de paz. E procuram ajudar, tratam os nativos com simpatia, respeitam as diferenças culturais. Por isso, em regra, são muito bem recebidos.

Por sua experiência no exterior, como o senhor avalia o Exército brasileiro?

No caso do Haiti, estávamos muito bem preparados e equipados. Melhor do que a maioria dos outros contingentes.

Com a compra de novos armamentos pela Venezuela e Chile, o equilíbrio geopolítico da nossa região está sendo alterado. O que o senhor acha?

No ano passado visitei, por cinco dias, o Exército do Chile, e pude constatar sua modernidade. As forças armadas de um país devem ser proporcionais à sua importância geopolítica e econômica. Acho que no Brasil há um descompasso. O Estado brasileiro precisa fortalecer urgentemente seu braço armado.

“É doloroso ver um pai entregar uma filha por uma barra de chocolate”, disse o jornalista Joel Silveira, que cobriu a atuação da FEB na Segunda Guerra e que morreu em agosto passado, aos 88 anos. Para Silveira, o que mais lhe marcou na guerra foi a degradação dos civis, motivada pela fome. O senhor pode comentar?

A miséria é torpe, sim, a miséria do Haiti é torpe. Mas ela existe também em tempo de paz. No país caribenho, a missão da ONU só faz minorar a miséria. Veja a nossa companhia de engenharia, que tem melhorado a infra-estrutura daquele país. O que, definitivamente, me aflige nos conflitos armados são as mortes inúteis, estúpidas, a violência gratuita.

Que lição o senhor tirou dessas missões no exterior?

Que não podemos nos omitir. O militar é um instrumento de defesa do país, e como tal precisa estar afiado para ser eficaz. Deve ser treinado, adestrado. E a melhor oficina de aprendizagem são as situações reais de conflito. Participar de missões de paz reforça a postura pacífica do Brasil e, ao mesmo tempo, prepara a defesa da nação. E não há aqui contradição ou cinismo. Cínico é o indiferentismo: “Por que atravessar o Atlântico em socorro de povos flagelados pela guerra, com tantos problemas aqui mesmo no Brasil?” Esse sim é um juízo falso, supor que estaremos protegidos abrigados na própria indiferença.

Trechos de na Guerra da Bósnia

“Pois é, Ramli. Como a mina foi-lhe pegar, logo a você, que a temia e disso não fazia segredo, que se protegia mais que todos? Logo a você, pai de seis filhos, amante de beisebol e da paz, precisamente no último dia? Quando cobriram seu corpo com aquele lençol branco, como ficou pequeno... Você assim parado, sem a agitação habitual, sem a grande risada que lhe rasgava a cara acobreada e redonda, parecia ter encolhido... Nada mais tenho a dizer-lhe, meu amigo. Descanse na paz do seu Deus. Repouse na paz do Deus de todos nós.”

“E eis que chegou a mulher toda aflita. Carregava nos braços um embrulho de pano. Abriu-o, lá estava o filhinho. Pediu socorro, um médico que tratasse da ferida na perna da criança. Um estilhaço. Mas, Deus meu, a criança não tinha... não tinha cabeça! Decepada pela estupidez dos homens, uma outra morte gratuita. Qual a miserável razão que justificava um preço assim alto? É um custo esse que não se pode pagar. Em nada mais se confia, senão na natureza. Aquela que dá à pobre mãe a loucura, temporária e misericordiosa, a extraordinária defesa psicológica de negar o insuportável. É o que a defende de si própria, que a impede de explodir ali mesmo, de dor.”

 

Para saber mais

Livros

Na Guerra da Bósnia, Claudinei Roncolatto, Editora Bibliex, 2005

 

Acervo

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