Há 74 anos, um navio da Alemanha Nazista, transportando militares e refugiados, foi torpedeado, levando ao fundo 9400, 5 mil dos quais, crianças
A missão era evacuar milhares de alemães que fugiam das tropas soviéticas durante a Segunda Guerra: Isso que o transatlântico Wilhelm Gustloff fazia na noite fria de 30 de janeiro de 1945 - enquanto deslizava nas águas do Mar Báltico em sentido oeste. Os capitães Friederich Petersen e Wilhelm Zahn iniciaram o percurso enfrentando névoa, blocos de gelo e ondas altas, mas perto das 21h eles abriram uma garrafa de conhaque para fazer um brinde: o pior já havia passado. O festejo durou pouco. Logo depois, o navio seria protagonista do maior desastre naval de todos os tempos.
Um projétil atinge a dianteira do navio. Quem estava perto do ponto de impacto era vaporizado. Portas herméticas se fecharam para selar a área, mas isolaram tripulantes. O navio começou a tombar para bombordo (sobre a esquerda). O segundo torpedo lançado errou o alvo. Já no terceiro torpedo lançado houve uma explosão sob a piscina vazia, que servia de abrigo para uma unidade feminina da Marinha. Apenas três das 373 mulheres sobreviveram. O impacto cria ondas de ar que levaram lascas de ladrilhos e metal para todos os lados, inclusive as cabines mais próximas. Apenas 3 das 373 mulheres sobrevivem aos cortes. Assim, o ultimo e quarto torpedo atingiu a sala de máquinas e cortou a energia do navio. Luzes de emergência se acenderam. Sem comunicação, o operador de rádio usava um transmissor de SOS. Também eram emitidos sinais de luz. Um barco da escolta captou e retransmitiu o pedido de socorro.
O navio tombou mais sobre a esquerda, impedindo o acesso aos botes. Tripulantes tentavam conter a confusão, sem sucesso. Muitos passageiros cairam no mar, outros morreram pisoteados. Desesperados, vários oficiais atiram em seus parentes e se matam. A inclinação complicava o acesso aos botes também do lado direito. A multidão não sabia como baixá-los. As amarras estão congeladas e poucos são usados corretamente. Muita gente pulou na água de 15 graus negativos e não conseguia ajuda nos botes lotados. Alguns náufragos eram até agredidos por quem já havia garantido seu lugar. Os coletes eram muito grandes para as crianças; várias acabam se afogando. O Gustloff afunda levando milhares de pessoas com ele.
O barco-escolta se aproximou e iniciou o salvamento. Outras embarcações alemãs chegaram para ajudar, entre elas um barco torpedeiro e três caça-minas. A escuridão e o gelo dificultavam os trabalhos, mas 1230 pessoas foram resgatadas com vida. Cerca de 9 400 morreram. Cerca de 1000 deles eram oficiais da marinha – mesmo se todos fossem nazistas (e isso nem sempre era o caso em se falando de militares alemães), sobram 8 400, o que ainda é, de longe, pior naufrágio da História em vidas humanas.
O navio de cruzeiro mais avançado do mundo. Assim os alemães receberam o Wilhelm Gustloff na sua festa de inauguração, em 1937. Hitler queria surpreender o mundo com o colosso de 208,5 metros e 25 mil toneladas, que tinha capacidade para 1880 pessoas - entre passageiros e tripulantes. Uma bela propaganda para o poderio do Terceiro Reich.
Dentro da Alemanha, a ideia era usar o navio para cooptar a classe trabalhadora ao nacional-socialismo. Ele foi construído para a KdF (Kraft durch Freude, ou Força da Alegria), uma organização sindical que promovia atividades de cultura e lazer para os funcionários do regime nazista. Agora eles podiam embarcar em excursões baratinhas para os fiordes noruegueses, a Ilha da Madeira e outros destinos da moda. Todas as cabines eram da mesma classe, o que se ajustava à noção de unidade racial do povo (volk). "Nas 50 excursões que realizou, o barco ofereceu aos seus 65 mil viajantes uma experiência inesquecível", diz o pesquisador canadense David Krawczyk, editor de um site sobre o Gustlöff e grande especialista na história. "Mas com o início da Segunda Guerra, em setembro de 1939, a Alemanha o transformou em navio-hospital."
Assim, uma faixa verde foi pintada ao longo do casco e cruzes vermelhas substituíram os emblemas da KdF. Nos meses seguintes, a embarcação gigantesca socorreu soldados feridos nas invasões alemãs à Polônia, Noruega e Dinamarca.
Em novembro de 1940, veio outra metamorfose: o navio virou um quartel flutuante para dar abrigo à esquadra nazista no porto de Gotenhafen, próximo a Danzig, na Prússia Oriental (atual Polônia). As cruzes vermelhas foram tampadas por tons de cinza, já que o objetivo, agora, era a camuflagem. O Wilhelm Gustloff ficou ancorado ali por quatro anos, mas as derrotas sofridas pela Alemanha no front soviético mudariam de novo o seu destino. E pela última vez.
Em janeiro de 1945, até o alemão mais otimista sabia que a guerra estava perdida. A contra-ofensiva do Exército Vermelho espalhava pânico na Prússia Oriental. "Legiões de refugiados, oficiais e soldados alemães feridos lotaram os portos de Danzig e Gotenhafen, tentando fugir para o oeste", diz o historiador americano James Wise no livro Soldiers Lost at Sea ("Soldados perdidos no mar", sem tradução no Brasil).
O almirante alemão Karl Donitz decidiu que era hora de agir: enviou à sua frota o código "Hannibal" - que significava evacuar a maior quantidade possível de militares e civis. O Gustloff foi preparado para a operação, mesmo após ter ficado imóvel por quatro anos. Os capitães Friederich Petersen e Wilhelm Zahn assumiram o desafio e, em 28 de janeiro de 1945, receberam a ordem de partir em 48 horas. A essa altura, o porto de Gotenhafen era puro caos. Homens, mulheres e crianças disputavam um lugar no navio, mas só podia entrar quem tinha um passe especial. Isso significava ter muito dinheiro, influência ou algum conhecido entre os tripulantes. Soldados feridos tinham prioridade.
O empurra-empurra no porto era tão grande que algumas crianças caíram na fresta entre o deck e o casco e desapareceram na água. "Pelas listas oficiais, 3 mil refugiados se instalaram no navio na manhã de 30 de janeiro. Contudo, a partir de então, a tripulação perdeu a conta dos que chegavam", afirma Krawczyk. "Portanto, nunca saberemos o número exato de pessoas que zarparam." Estima-se que mais de 10 mil pessoas se amontoaram no navio, inclusive dentro da piscina vazia. Quase a metade era de crianças e adolescentes.
Gustloff zarpou ao redor das 12h30 com destino à baía de Kiel, no oeste do Báltico. Apesar do frio externo, o calor era intenso dentro do navio. Muitos tiraram os coletes salva-vidas, e não demorou para que enjoassem e vomitassem com os solavancos provocados por ondas de vários metros de altura. A tensão também era grande na cabine de comando, já que apenas um barco torpedeiro escoltava o navio. Os capitães sabiam que a região era cheia de minas e monitorada pelos ingleses. No início da noite, eles perceberam que um comboio de caça-minas alemães se aproximava na direção oposta. Apesar dos protestos do colega, Petersen decidiu acender as luzes de navegação para evitar uma colisão no meio da névoa. Seria um erro fatal.
A poucos quilômetros dali, escondido nas profundezas do Báltico, o submarino soviético S-13 patrulhava a costa de Danzig. Seu capitão, Alexander Marinesko, estava sendo investigado pelos superiores por causa de alguns deslizes - era beberrão - e precisava de uma glória para limpar sua ficha.
Pouco antes das 20h, o S-13 detectou luzes entre a névoa densa. Marinesko agarrou o periscópio e visualizou a silhueta do colosso alemão. Nas duas horas seguintes, ele o perseguiu com cuidado, sorrateiro, preparando-se para dar o bote. O mais mortífero de sua carreira.Logo após as 20h, os auto-falantes do Gustlöff interromperam a música ambiente para transmitir um discurso de Hitler ao vivo no rádio, comemorando os 12 anos de ascensão do nazismo. Os passageiros não tinham motivo para celebrar, claro. Mas pelo menos a ameaça soviética parecia ter ficado para trás.
Enquanto isso, Marinesko e sua equipe preparavam quatro torpedos, pintando cada um com uma mensagem. Torpedo 1: "Para a pátria". Torpedo 2: "Para Stalin". Torpedo 3: "Para o povo soviético". E torpedo 4: "Para Leningrado". Perto das 21h, o capitão ordenou: "Fogo!" O torpedo dedicado a Stalin perdeu o rumo, mas os outros três acertaram o alvo em cheio (veja a partir da pág. 41). Os passageiros situados nos locais de impacto perderam a vida na hora. Os outros correram em pânico para a zona dos botes. Muitos foram pisoteados, outros se jogaram no mar e morreram congelados, apesar do resgate feito por barcos da frota alemã.
"O navio afundou a só 12 milhas da costa (cerca de 22 km), mas o pânico e a temperatura da água (15 graus negativos) causaram uma enorme perda entre os que tinham escapado do naufrágio", diz o analista naval americano Norman Polmar. "O cruzador alemão Almirante Hipper estava próximo, mas não prestou socorro por medo dos submarinos."
Hoje, diversos pesquisadores estimam que 1230 pessoas sobreviveram ao naufrágio. O número de mortos é menos preciso, pois não se sabe ao certo quantos passageiros havia no Gustloff. As cifras giram em torno de 9 mil pessoas, ou seis vezes o número de vítimas do Titanic. E mesmo assim você provavelmente nunca ouviu falar dessa tragédia. Afinal, por que ela é tão pouco conhecida? Primeiro, porque ocorreu durante uma guerra - e, para muitos, desastres assim são menos trágicos que os ocorridos em tempos de paz. Os aliados não deram muita bola para o desastre sofrido pelo inimigo. Para os soviéticos, aliás, os torpedos do S-13 eram uma retribuição à ocupação alemã. E o próprio Hitler não quis admitir que seu gigante dos mares havia tido esse destino. Além disso, durante décadas muitos alemães se sentiram culpados pelas atrocidades que seu país cometeu antes e durante o conflito, e esse sentimento pode ter ofuscado a tragédia naval. "Ao contrário do Titanic, o Gustloff não viajava rumo aos Estados Unidos e não havia americanos a bordo. Assim, essa história não teve apelo para Hollywood", diz David Krawczyk. Também pudera: Wilhelm Gustloff era líder do Partido Nazista na Suíça (leia abaixo). Se o navio tivesse outro nome, talvez ganhasse mais simpatia.
E pensar que o plano original era batizá-lo de Adolf Hitler...
Soldiers Lost at Sea - A Chronicle of Troopship Disasters, James E. Wise Jr. e Scott Baron, Naval Institute Press, 2004