Em entrevista ao Aventuras na História, a mãe e o irmão de Jean Charles Menezes compartilharam o processo de produção e impacto da nova série sobre o caso
Vinte anos após o assassinato de Jean Charles de Menezes pela polícia britânica, o caso volta aos holofotes com a estreia da série "Caso Jean Charles: Um Brasileiro Morto Por Engano" no Disney+, em 30 de abril. A produção recria o erro fatal da Metropolitan Police e a longa busca por justiça da família do brasileiro.
Com quatro episódios, a série combina dramatizações, entrevistas reais, imagens de arquivo e reconstituições minuciosas para reconstruir os eventos que levaram à morte de Jean, interpretado por Edison Alcaide.
Embora a história do brasileiro já tenha sido abordada antes, como no filme Jean Charles (2009), a série do Disney+ é a primeira a oferecer uma reconstituição detalhada com acesso à família, documentos e novos depoimentos.
Em entrevista ao Aventuras na História, o irmão de Jean, Giovanni Menezes, e a mãe, Maria Menezes, falaram sobre o impacto da série e participação.
Contribuímos com fotos, memórias da infância. Coisas particulares nossas, que precisaram ser explicadas: a infância do Jean, a adolescência, a vivência dele com a gente, em família. É uma série muito boa. Vai mostrar a realidade que aconteceu. Muita coisa foi escondida, mentiras foram ditas", destaca Giovanni.
Jean Charles de Menezes foi morto em 22 de julho de 2005, após ser confundido com um suspeito de terrorismo. Naquele mês, Londres havia sido alvo de atentados coordenados — no dia 7 de julho, 52 pessoas morreram em ataques suicidas.
No dia 21, uma nova tentativa de atentado falhou, e a cidade estava em alerta máximo. Na manhã seguinte, Jean saiu para trabalhar. Ao entrar no metrô em Stockwell, foi seguido por policiais à paisana que acreditavam que ele era Hussain Osman (Feyesa Wakjira), um dos suspeitos dos atentados fracassados.
No vagão, foi imobilizado e baleado sete vezes na cabeça a curta distância. A operação foi coordenada por Cressida Dick (Emily Mortimer), então comandante da unidade policial que ordenou a abordagem. Dick viria a se tornar, anos depois, a primeira mulher a chefiar a Metropolitan Police.
O corpo de Jean foi repatriado para o Brasil em 27 de julho, e o funeral ocorreu em Gonzaga (MG), cidade onde nasceu, no dia 29. Uma missa pública em sua homenagem foi realizada na Catedral de Westminster, com a presença do cardeal Cormac Murphy-O'Connor.
Nos primeiros dias, a imprensa britânica reproduziu o relato policial de que o brasileiro havia corrido, desobedecido ordens e usado um casaco pesado — tudo desmentido pelas investigações posteriores.
Até hoje tem gente que pergunta se o meu irmão estava envolvido com terrorismo. Essa série vai ajudar a desmontar isso", afirma Giovanni.
A versão oficial dos fatos mudou diversas vezes, e a polícia foi acusada de acobertar erros. Ian Blair (Conleth Hill), comissário da Metropolitan Police à época, foi criticado por defender publicamente a atuação da corporação mesmo diante de contradições nos relatos oficiais. O caso gerou protestos e debates sobre racismo institucional, segurança pública, imigração e o uso da força pela polícia.
Nenhum policial foi processado pelo assassinato. A Metropolitan Police foi multada por violar leis de saúde e segurança, mas os agentes envolvidos não enfrentaram acusações criminais.
Em 2016, a família perdeu um recurso na Corte Europeia de Direitos Humanos que contestava a ausência de responsabilização e, embora não mova mais ações legais, ainda considera possíveis futuros passos. "O que foi feito, foi relatado. Agora não podemos prever o futuro. Não sabemos o que pode acontecer", diz Giovanni.
A polícia reconheceu a tragédia e pediu desculpas à família, explicando que a morte de Jean ocorreu "em um momento de ameaça terrorista sem precedentes em Londres". O episódio foi alvo de múltiplas investigações, incluindo duas realizadas pela antiga Comissão Independente de Reclamações contra a Polícia (IPCC), que identificaram falhas graves na conduta da polícia e manipulação de informações.
A investigação enfrentou resistência da polícia, que tentou obstruir o trabalho da IPCC. Em agosto de 2005, a ITV vazou documentos que contradiziam a versão oficial da polícia. A secretária da IPCC, Lana Vandenberghe (Laura Aikman), assumiu a responsabilidade pela falha, mas foi demitida em seguida.
As investigações, que duraram vários meses, culminaram nos relatórios 'Stockwell 1' e 'Stockwell 2', revelando as falhas no procedimento policial.
Para a família, o trauma permanece. Maria lembra com dor das cenas que mais a marcaram na série. "A parte em que o policial deu o mata-leão e atiraram nele… ali machucou muito. Essa parte eu não consigo assistir. Mesmo depois de 20 anos, parece que aconteceu ontem. É muito dolorido. Muito terrível", desabafa.
Questionada se a série ajudou no processo de luto, ela respondeu: "Sim, ajudou. Mas é muito difícil. Você não tem ideia do que é perder alguém assim. Ele só veio trabalhar. Morreu inocente, como uma criança." Sobre o legado de Jean, o irmão reforça:
Queremos que as pessoas lembrem dele como um rapaz decente, trabalhador, honesto. Que entendam que qualquer um pode correr esse risco só por estar tentando viver a própria vida com dignidade."
"Todos que estão na luta, como foi o caso do Jean — um jovem que morreu batalhando, buscando uma vida melhor, saindo do seu país para tentar algo em outro lugar —, que não percam a fé. Que continuem firmes, que sejam fortes. Porque, mesmo com um incidente como esse, a gente não pode desistir. Enquanto estivermos vivos, temos que trabalhar, temos que lutar, temos que correr atrás dos nossos objetivos", acrescenta.