Minissérie estrearia na Netflix na última quinta, 1º; mas produção, que reconstrói um dos crimes mais elaborados já julgados na Espanha, foi barrada
A minissérie documental 'Angi: Crime e Mentira' estrearia na última quinta-feira, 1º de maio, na Netflix, mas uma ordem judicial impediu sua transmissão, conforme fontes da plataforma de streaming.
A produção, dirigida por Carlos Agulló, reconstrói um dos crimes mais elaborados e perturbadores já julgados na Espanha: o assassinato de Ana Páez em 2008, cometido por María Ángeles Molina, conhecida como 'Angi', e que ficou conhecido como "o crime quase perfeito".
Com acesso a arquivos policiais inéditos e dezenas de entrevistas, a produção lançaria nova luz sobre outra morte suspeita ligada a Molina.
"Além dos autos, revisamos mais de 2.000 páginas de processos, laudos criminológicos e arquivos de familiares. Realizamos mais de 60 entrevistas com policiais aposentados, detetives particulares e pessoas próximas aos dois casos. Foi uma apuração com múltiplas facetas, tantas quanto as múltiplas identidades de Angi", declarou Agulló ao site About Netflix.
A 'proibição' da série ocorreu após Angi processar a Netflix por usar suas imagens pessoais antes do crime — que, supostamente, não tiveram seu consentimento, segundo relatado pelo portal espanhol El Observador.
A seguir, confira cinco fatos que ajudam a entender a história real por trás da produção.
No dia 19 de fevereiro de 2008, Angi convidou sua amiga Ana Páez para um jantar em um apartamento no bairro de Gràcia, em Barcelona. O que aparentava ser um encontro amistoso escondia um plano meticulosamente arquitetado. O imóvel havia sido alugado por Molina usando documentos falsificados em nome da própria Ana.
Naquela noite, ao receber a amiga no apartamento, Angi a anestesiou com uma substância ainda não identificada pela perícia. Com a vítima inconsciente, colocou um saco plástico em sua cabeça e o lacrou com fita isolante até provocar a morte por asfixia, repercute o The Times.
Em seguida, para despistar as investigações e dificultar a identificação da verdadeira motivação do crime, simulou um abuso sexual: introduziu sêmen na boca e na vagina da vítima. O material genético havia sido obtido de forma bizarra e premeditada — Angi pagou dois homens em um bordel masculino para coletarem o sêmen, que ela armazenou em um frasco.
O assassinato, cuidadosamente planejado, foi disfarçado como um crime sexual aleatório, numa tentativa de desviar o foco da polícia e impedir a ligação com a série de fraudes financeiras que Angi vinha cometendo em nome de Ana.
Antes mesmo do assassinato, Angi já havia dado início a um elaborado esquema de fraudes utilizando a identidade de Ana. Aproveitando-se da confiança da amiga, ela roubou seus documentos pessoais e, com eles, abriu contas bancárias, contratou seguros de vida e solicitou uma série de empréstimos que, somados, ultrapassavam um milhão de euros.
A artimanha envolvia ainda o nome de uma terceira pessoa: Susana B., uma mulher completamente alheia ao plano criminoso. Susana teve sua identidade usada inadvertidamente após esquecer um documento pessoal em uma loja de fotocópias, informou o El País.
Angi se aproveitou da situação para colocá-la como beneficiária dos contratos, numa tentativa de camuflar a ligação direta entre as fraudes e Ana. Dessa forma, criou um emaranhado de identidades manipuladas com o objetivo claro de obter lucros financeiros e dificultar o rastreamento da operação.
No mesmo dia em que executou o assassinato, Angi tentou montar um álibi para despistar a polícia. Ela viajou até Zaragoza dirigindo um Porsche para buscar as cinzas do pai, falecido no ano anterior.
A ação foi cuidadosamente planejada para dar a impressão de que estava fora de Barcelona durante o horário do crime. Ao vincular sua ausência a um gesto emocional e legítimo, pretendia desviar qualquer suspeita sobre sua presença na cidade.
No entanto, as investigações rapidamente desmontaram essa versão. Imagens de câmeras de segurança flagraram ela em Barcelona no mesmo dia, disfarçada com uma peruca, enquanto sacava 600 euros de uma conta bancária aberta em nome da própria Ana.
A evidência visual foi crucial para confrontar a narrativa do álibi, mostrando que ela não apenas estava na cidade, mas ativamente utilizando a identidade da vítima horas antes do homicídio.
As provas encontradas em sua residência reforçaram ainda mais o caso contra ela. Durante uma busca, a polícia localizou uma apólice de seguro de vida emitida em nome de Ana, uma garrafa de clorofórmio ainda lacrada e documentos pessoais da vítima escondidos atrás da caixa acoplada do vaso sanitário.
A forma como os objetos estavam escondidos indicava tentativa de ocultação deliberada, demonstrando que Angi não apenas arquitetou o crime, mas também trabalhou para eliminar rastros e consolidar a fraude.
Em 2024, após anos de investigação e julgamento, o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha sentenciou Angi a 22 anos de prisão. A pena foi dividida em 18 anos pelo assassinato de Ana e mais 4 anos pelos crimes de falsificação de documentos e fraude financeira.
A sentença destacou o caráter “especialmente perverso” do crime, sublinhando o fato de que Molina se aproveitou da relação de confiança com a vítima para executar um plano meticuloso e brutal, movido por ambição e ganância.
O tribunal considerou que ela planejou cada detalhe com frieza e cálculo, desde a manipulação das identidades até a encenação do crime como um ato sexual violento para despistar os investigadores.
Segundo El País, a estratégia foi desmontada com base em provas contundentes, como imagens de câmeras de segurança, testemunhos bancários, materiais encontrados em sua residência e o histórico de fraudes cometidas antes do assassinato.
Durante o julgamento, Molina negou todas as acusações, mantendo uma postura defensiva e, em certos momentos, até debochada. Em uma tentativa de justificar sua presença fora do local do crime, afirmou ter ido a um mercado para comprar um relógio e, posteriormente, alimentos.
Em tom irônico e desconcertante, declarou diante dos magistrados e da família de Ana: “Sem iogurtes e leite condensado, eu não sou nada.” A frase, considerada absurda e insensível, causou indignação e reforçou a percepção de frieza e desdém da ré em relação à gravidade dos fatos.
Além do assassinato de Ana Páez, Angi: Crime e Mentira reabre as investigações sobre a misteriosa morte de Juan Antonio Álvarez Litben, empresário e então marido de Molina, encontrado morto em 1996.
Na época, o caso foi rapidamente encerrado como uma morte acidental, apesar das circunstâncias pouco claras. Litben teria caído de um penhasco durante uma viagem, e não houve aprofundamento policial sobre a possibilidade de crime.
A minissérie da Netflix traz à tona documentos policiais e judiciais inéditos, incluindo relatos de familiares e conhecidos do casal que jamais haviam sido ouvidos publicamente. Entre os novos elementos apresentados estão contradições no depoimento de Angi, irregularidades na cena da morte e a ausência de perícias detalhadas, que hoje seriam consideradas essenciais.
Com base nesses materiais, Angi: Crime e Mentira sugere que a morte de Litben pode ter sido o primeiro passo de um padrão criminoso sofisticado e premeditado, marcado por fraudes, manipulação de identidade e a eliminação de pessoas próximas.