Descoberta, feita em 2017, revelou as primeiras evidências de que hominídeos abateram animais no sítio arqueológico de Grăunceanu, na Romênia
Felipe Sales Gomes, sob supervisão de Fabio Previdelli Publicado em 23/04/2025, às 14h45 - Atualizado em 24/04/2025, às 18h01
Foi com um suspiro contido que Sabrina Curran, integrante da equipe de pesquisa da Universidade de Ohio, olhou novamente para a superfície de um fóssil através de uma lente de aumento.
Sob uma luz intensa colocada em ângulo raso, ela conseguiu ver claramente marcas em forma de V gravadas no osso — sinais inconfundíveis de cortes feitos por ferramentas de pedra. Curran já havia identificado marcas semelhantes em fósseis do sítio arqueológico de Dmanisi, na Geórgia, datados de 1,8 milhão de anos atrás.
Aquela descoberta, feita em 2017, revelou as primeiras evidências de que hominídeos abateram animais no sítio arqueológico de Grăunceanu, na Romênia, há pelo menos 1,95 milhão de anos. Antes disso, as marcas de Dmanisi eram as mais antigas e bem documentadas evidências da presença de nossos ancestrais humanos na Eurásia.
Com o tempo, novas descobertas em sítios na Eurásia e no norte da África trouxeram fósseis, ferramentas de pedra e ossos com sinais de abate. A pesquisa publicada recentemente, na Nature, por essa equipe, vem somar a esse conjunto de informações, fornecendo evidências bem datadas de que hominídeos já habitavam aquela região do mundo por volta de 2 milhões de anos atrás.
O sítio arqueológico de Grăunceanu começou a ser escavado nos anos 1960, revelando milhares de fósseis de animais do Pleistoceno Inferior. É um dos locais mais significativos da Europa Central e Oriental para o estudo desse período.
Muitos dos ossos foram encontrados praticamente intactos, como se ainda estivessem no local onde os animais caíram. Devido à alta concentração de fósseis, os arqueólogos apelidaram o local de "ninho de ossos".
Se alguém estivesse por lá há 2 milhões de anos, encontraria uma paisagem até familiar: um rio serpenteando entre florestas e pradarias, margens que transbordavam em épocas de cheia e alimentavam solos férteis.
A fauna, porém, revelava um mundo diferente — com avestruzes, pangolins, girafas, tigres-dentes-de-sabre e hienas vagando por uma Europa muito distinta da atual.
Com o passar dos anos, a equipe — formada também pela antropóloga Claire Terhune, a zooarqueóloga Samantha Gogol e o paleoantropólogo Chris Robinson — examinou cuidadosamente 4.524 fósseis do sítio, procurando novas marcas de corte. Usando lupas e luz de baixo ângulo, eles inspecionaram cada osso. Quando encontravam algo suspeito, faziam moldes com material odontológico.
Mas como distinguir uma marca de corte feita por humanos de uma feita por dentes de animais, pedras em movimento ou até raízes de plantas? A resposta veio com uma técnica moderna desenvolvida pelo zooarqueólogo Michael Pante.
Eles usaram um perfilador óptico 3D sem contato para capturar imagens precisas das marcas. Depois, compararam essas imagens com um banco de dados contendo quase 900 marcas conhecidas, geradas por diferentes processos — como mordidas de carnívoros, abrasão de sedimentos e cortes com ferramentas de pedra.
Além disso, a equipe analisou a localização anatômica das marcas. Marcas próximas a pontos de inserção muscular, por exemplo, são indicativas de abate humano.
O resultado? Vinte fósseis apresentavam marcas de corte, sendo oito com altíssima confiabilidade. A maioria era de animais com cascos, como veados, mas um deles era um osso de carnívoro. As marcas apareciam em locais típicos onde se cortaria carne.
Para confirmar a idade do sítio, o pesquisador Virgil Drăgușin solicitou ao geoquímico Jon Woodhead que aplicasse a técnica de datação urânio-chumbo (U-Pb) em pequenos fragmentos de dentes encontrados no local.
Apesar de dentes geralmente não serem ideais para esse tipo de análise, os testes surpreenderam: funcionaram excepcionalmente bem. Com a colaboração de John Hellstrom, conseguiram determinar uma idade precisa para o sítio: mais de 1,95 milhão de anos.
Com datação sólida e a identificação segura de marcas de corte, a equipe construiu um cenário robusto da presença de hominídeos em Grăunceanu. Embora não tenham sido encontrados fósseis humanos no local, os ossos marcados fornecem uma evidência convincente da atividade desses ancestrais.
É impossível voltar no tempo, mas, com cada fragmento de osso e cada linha deixada por ferramentas primitivas, os pesquisadores conseguem montar uma imagem vívida do passado.
Imaginamos, então, a paisagem de Grăunceanu há quase 2 milhões de anos: veados cautelosos se aproximando do rio, mamutes à distância, cavalos pastando, tigres-dentes-de-sabre espreitando suas presas — e, entre eles, um pequeno grupo de hominídeos se alimentando da caça recém-abatida.