"Os Sertões", de Euclides da Cunha, é uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira, reunindo história, sociologia, geografia e literatura
"Os Sertões", de Euclides da Cunha, é uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira, reunindo história, sociologia, geografia e literatura para retratar a Guerra de Canudos (1896-1897).
O conflito ocorreu no interior da Bahia entre o Exército e os seguidores de Antônio Conselheiro, líder messiânico que atraiu sertanejos para a comunidade de Belo Monte, considerada uma ameaça pela recém-instaurada República.
A obra é dividida em três partes: "A Terra", "O Homem" e "A Luta". Na primeira, Cunha descreve detalhadamente o sertão nordestino, abordando sua geologia e clima adverso. Em "O Homem", analisa a população sertaneja, influenciado por teorias científicas da época. Por fim, em "A Luta", reconstrói os eventos da guerra, denunciando o massacre dos sertanejos e a brutalidade do Exército.
A obra mescla narrativa jornalística, análise sociológica, descrição geográfica e linguagem literária, criando um modelo híbrido que influenciaria gerações de escritores e jornalistas. A seguir, confira cinco curiosidades sobre o livro.
"Os Sertões", escrito entre 1897 e 1902, é frequentemente apontado como uma das primeiras obras de jornalismo literário no Brasil, antecipando o que, décadas depois, ficaria conhecido como "livro-reportagem".
Em entrevista a BBC em 2022, a especialista em dramaturgia Ana Sampaio Machado explica como o livro entrou para os livros de História.
"Ao descrever detalhadamente a paisagem, as pessoas e os fatos sem romancear, prezando pela organização, se encaixa no gênero jornalístico, porém não pode ser classificado como tal, por sua extensão, pela escolha do vocabulário incomum e pelo estilo de escrita", disse.
O pesquisador Felipe Rissato explicou ao veículo que o livro surgiu a partir das reportagens que Cunha enviava ao jornal "O Estado de S. Paulo", com mais de 60 telegramas detalhando a guerra.
Durante o processo de escrita e revisão de "Os Sertões", a própria perspectiva de Cunha sobre a Guerra de Canudos passou por uma transformação. Enquanto cobria o conflito, sua visão alinhava-se à narrativa oficial, adotando uma postura favorável à campanha militar. No livro, porém, assume um tom de denúncia contra a violência imposta aos sertanejos.
Essa mudança pode ser compreendida a partir do contexto em que ele atuou como correspondente. Para garantir acesso ao front, resgatou sua patente de primeiro-tenente — que já não exercia — e se integrou à estrutura militar, usando uniforme e contando com ajudante de ordens.
O título "Os Sertões" não foi a primeira escolha de Euclides da Cunha para sua obra. Inicialmente, ele pretendia chamá-la de "A Nova Vendeia", uma referência à revolta contrarrevolucionária ocorrida na França em 1793, na região da Vendeia, quando camponeses monarquistas se levantaram contra a Revolução Francesa.
A escolha inicial reflete a visão que o autor tinha logo após acompanhar a Guerra de Canudos como correspondente. Na época, ele compartilhava a ideia, amplamente difundida pela imprensa e pelo Exército, de que o conflito era uma ameaça monarquista à jovem República.
Com o passar dos anos e a análise mais aprofundada dos eventos, Cunha reformulou sua interpretação sobre o massacre de Canudos e, consequentemente, o título do livro, repercute a BBC. A expressão "Os Sertões" amplia o escopo da obra, indo além do episódio específico da guerra e abrangendo a geografia, o povo e os conflitos da região nordestina.
O lançamento de "Os Sertões" não tem uma data exata, mas, de acordo com Rissato, é provável que a primeira edição tenha sido publicada em 2 de dezembro de 1902. Já no dia seguinte, a obra recebeu críticas entusiásticas, com a primeira resenha de José Veríssimo no "Correio da Manhã".
O sucesso foi imediato, com a primeira edição esgotando-se em poucas semanas. Em 1903, Cunha foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A ambição de Cunha em abordar diversos campos do conhecimento, como geologia, botânica, filosofia e história, comprometeu a parte científica de "Os Sertões". Embora a obra tenha sido inicialmente vista como uma fusão entre ciência e arte, ela acabou criticada pela fragilidade de suas argumentações científicas.
A tentativa de ser enciclopédico resultou em um trabalho superficial em várias áreas, com erros evidentes, como falhas botânicas e uma descrição imprecisa de Belo Monte.
A obra também reflete uma visão racista, especialmente na parte antropológica, onde Euclides adota teorias racialistas ultrapassadas. Santos destaca que, apesar de ser um produto de seu tempo, a escolha de Cunha por essas teorias deve ser analisada criticamente.
Inclusive, esse tópico é tema de um recente texto escrito pelo professor de História Vítor Soares para a AH.