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O corpo feminino se despe

A revelação do prazer no teatro de revista

Mary del Priore Publicado em 25/08/2016, às 11h17 - Atualizado em 23/10/2017, às 16h35

No início do século 20, ao expor com prazer seus corpos bem delineados, as chamadas “girls” fizeram recuar as fronteiras do pudor feminino. Para entender quem eram tais garotas, é preciso voltar um pouquinho. No período que vai dos anos 1880 aos 1910, a força do palco estava centrada na figura masculina. Dominava a revista do ano, trocadilho de alusão sexual, que punha em cena a palavra sexualizada. Nem gestos nem corpos. Muito menos corpos nus. Mas sim comediantes contando piadas alusivas a sexo e no limite do que a moral permitia. A insinuação era o mote do riso. Olhares maliciosos, gestos e inflexões alimentavam os subentendidos. 
Na primeira fase do teatro de revista, as girls, que ainda se denominavam coristas, usavam meias grossas cor da pele. Os decotes eram discretos e os adornos, pouco apelativos. O corpo cobria-se de fantasias e não se expunha. A partir da primeira década do século, a revista do ano foi substituída pelo teatro de revista e o enredo começou a ficar para trás. Em vez da piada, a música e a dança ganhavam espaço, e, logo, as coristas. Multiplicavam-se as chamadas revistas carnavalescas, em que o corpo balançava de forma diferenciada, embalado por marchinhas destinadas à folia do Carnaval. A cadência acentuava o movimento das cadeiras no rebolado feminino. 
A presença de companhias estrangeiras em tournée pelo Brasil – a francesa de Madame Rasimi e a espanhola Velasco – introduziu a valorização em cena de mulheres sedutoras, com braços e seios de fora, sem meias cor da pele. A fronteira entre a cena e os espectadores diminuía. 
Por meio da revista, muita coisa iria mudar. No início do século, as fotografias exibiam coristas gordinhas, envoltas em indumentária farfalhante, que pipocavam na introdução ou conclusão da peça emoldurando o desempenho de astros e estrelas. As “gorduchinhas” simbolizavam o corpo feminino desejado, longe da estética de magreza que viria depois. 
Vestidas? Sim, pois um corpo sem roupas ainda representava mais anseios do que prazer. Eis por que se mostravam apenas algumas partes nuas. Tais partes despertavam desejos ocultos e aceleravam a imaginação: o corpo da corista era vestido exclusivamente para ser despido pelo olhar do espectador. Já o teatro de revista antecipou o corpo que apareceria com sua vestimenta original: a pele. O silêncio que antes recobria a sexualidade, rotulada como coisa suja e pecaminosa, começou a ser quebrado. As revistas assumiram, a partir de 1920, um ritmo carnavalesco, adotando marchinhas e músicas da folia. O maxixe invadiu os palcos com requebrados e rebolados que colavam as coxas das mulheres às dos homens. Explorava-se uma transformação visível e visual da silhueta. Por suas posturas e adereços, as coristas manifestavam um profissionalismo antes inexistente. Maquilagem, penteados e unhas vermelhas anunciavam a chegada de um novo corpo sexualizado. Nada a ver com o charme ou a sedução das senhoras casadas e burguesas, que, certamente, não frequentavam as revistas. 
Apesar do tom de brincadeira, nada mais se improvisava. Coreógrafos e artistas importados ensinavam as coristas a dançar. Vedetes como Otília Amorim, Margarida Max, Aracy Cortes e outras girls abandonavam as gorduras e mostravam corpos trabalhados pela dança que enchiam os olhos gulosos do público. Em meio às nuvens de fumaça e cascatas d’água, eles amontoavam-se: cada vez mais esculturais. Propagava-se um imaginário influenciado pela modernidade: pernas de fora, jogos de sedução em cada gesto ou olhar, enfim, a quebra de tabus que anunciava a mulher moderna. 
No Rio de Janeiro, capital da República, Walter Pinto, produtor de teatro que iria revelar Dercy Gonçalves e Carmen Miranda, inventou uma escada em meio ao palco. Enquanto a plateia delirava, podendo examinar cada centímetro de carne exibida entre adereços apelativos, vedetes e girls desciam os degraus com majestade e de cabeça erguida. Apelando para o olhar masculino, a nudez feminina erigia-se numa forma de poder: o de dar prazer a alguns homens, membros de uma sociedade profundamente moralista. Um pouco mais tarde, as “certinhas” de Stanislau Ponte Preta, mulheres curvilíneas com biquínis minúsculos, as vedetes do teatro rebolado protagonistas de comédias como Tem Bububu no Bobobó, Vem de Ré Que Eu Tô em Primeira ou as “jambetes” desenhadas por Lan, fariam delirar a imaginação masculina. 
Os limites da tolerância evoluíram rapidamente durante os anos 1950. A revista passou a explorar cada centímetro de carne em toda a sua nudez. A tentação era de atingir o realismo cru. De ver mais e de mais perto até chegar à vertigem. Curiosamente, esse desnudamento acelerado de vedetes e girls levou ao desmoronamento do gênero. Surgiu o striptease teatralizado. O palavrão e o sexo quase explícito invadiram o palco, onde antes a revista deleitava, mas também divertia. O público mais contido fugiu. Não à toa, nessa época, para a maior parte das pessoas, atriz e meretriz rimavam.
Brasil

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